3 de abril de 2008

viver mulher

Quando Maria era pequena
sentada com a mãe junto à lareira
ouvia a história maravilhosa
da fabulosa gata borralheira

E à noite ela adormecia
sonhando com o príncipe
com quem casaria

Quando Maria cresceu um pouco mais
a ser uma mamã
a mãe lhe ensinou
e ela mimava durante o dia
com a boneca de que mais gostou

Quando Maria fez quinze anos
a mãe falou-lhe do que fazer
e ela matava os seus desejos
pois uma boa esposa
queria vir a ser

E à noite ela adormecia
sonhando com o homem
com quem casaria

Quando Maria chegou aos vinte
um certo bom rapaz
veio pedi-la aos pais
Não o amava mas a mãe disse
é um bom partido
o que é que tu queres mais.

Quando Maria se viu já casada
dona de casa como convinha
ela esperava durante o dia
esperava o amor à noite
mas o amor não vinha

Depois Maria teve uma filha
e tudo volta de novo atrás
em sonhos destes já não caía
mas prá menina dela
era o que escolhia.

Esta é a letra, segundo me lembro, de uma canção da Io Apolonni no álbum Viver Mulher, algures nos anos 70. Esta canção, que eu ouvia em loop enquanto, aos sábados à tarde, na adolescência, ajudava a minha mãe na limpeza da casa, foi-me revoltando contra aquilo que de tão arrumadinho esperam de nós. Decidi que comigo não seria assim. E de alguma forma, não foi, mas por outro lado...
Escolhi eu o meu príncipe e quando percebi que não era ele, saí da história e quis começar novas histórias. Mas há uma espécie de deformação que nos fica e continuei a acreditar que eles existem. Portanto, continuei a escrever novas histórias.
A meio deste processo, nasceu a minha filha. Agarrei-me a pragmatismos bacocos e decidi que ela não veria a vida a cor de rosa, nem em pequenina. Mas nós não mandamos no que os outros são e aí está a minha pequena Carolina a sonhar com princesas em bailes.
Nisto, páro e olho para mim mesma. Terei mesmo renunciado a esta fantasia? Se encontro um homem, se me apaixono por ele, se espero que seja só meu, completamente meu, se espero que me queira só para si, se espero que os planos sejam sempre feitos em conjunto, se deixam de me fazer sentido planos paralelos, não estarei a ser a Maria da canção?
Se a razão me diz que não é possível que haja histórias de amor felizes, que um homem e uma mulher não são mais do que isso, dois seres individuais, que o amor morre ao menor descuido, que os nossos sonhos não passam disso mesmo, que nada é incondicional e que vivemos permanentemente numa corda bamba, deixar-me apaixonar não é render-me às histórias fantásticas?
Já acreditei em muitas coisas, já acreditei em brincar às casinhas, já acreditei que as casas devem ser sempre duas, já acreditei que o amor pode ser eterno, já acreditei que o amor é uma ilusão. E enquanto acreditava, estava sossegada, sabia onde estava. Pior, pior é não saber que lugar é o meu.

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