30 de abril de 2008

o grande sedutor

Já disse aqui que o meu amigo Rogério dedica uma parte do seu tempo a ser "aquele" amigo. Fá-lo com charme, com sabedoria, com ternura, com entrega. Já lhe perguntei se devo agradecer tamanha disponibilidade, não sei se estas coisas se agradecem.
O Rogério lamenta não ser capaz de boas parábolas, tal monge budista, daquelas que a gente copia para um caderno ou escreve como mensagem de boas vindas no telemóvel, ou como fundo de écran no computador, daquelas que resumem todo um pensamento ou até uma solução.
No entanto, disse-me uma frase cheia de saber, provavelmente uma frase que eu não esperaria ouvir de um homem, que entre eles e nós, as diferenças vão além de saber quem carrega as malas ou de quem dispõe as flores na jarra.
Disse-me "O grande sedutor deve ser aquele que se antecipa e distribui, preventivamente, provas de amor." Não sei se ele sabe, mas esta é mesmo uma solução. Porque há coisas que, independentemente do seu valor intrínseco, perdem ou ganham mais dependendo de virem a pedido ou por iniciativa própria.
E este terreno, o das provas de amor, é cheio de armadilhas, temos que trilhá-lo com pézinhos de lã.

o trigo e o joio

Nem todas as pessoas que se dizem nossas amigas o são, de facto. Isto toda a gente sabe, até a minha filha, que eu já lhe ensinei. Mas estes ensinamentos não passam de teoria, também toda a gente sabe.
Dos amigos que se dizem amigos, a gente espera sinceridade, franqueza, ora bolas!, amizade, não é? A gente não espera que nos indiquem caminhos que tanto eles como nós sabemos que não são os que nos levam onde queremos ir. A gente não espera que tenham inveja nem ciúmes de nós. E que esses sentimentos os façam ser falsos por detrás do sorriso.
Dos amigos esperamos que sejam despojados de interesse, ou que o interesse deles não interfira com o nosso, de tal modo que nenhum se concretizará.
Esperamos que quando nos perguntam como estamos, não seja para comprovar outras respostas, que as perguntas não tenham rasteira, que não queiram saber o que nos magoa para aproveitar e espetar aí mais uma farpa.
Mas nem todas as pessoas que se dizem nossas amigas o são, de facto. Repito, nem todas as pessoas que se dizem nossas amigas o são, de facto. Pelo que a responsabilidade primeira é nossa.

cartas portuguesas

(...) Mas não importa, estou resolvida a adorar-te toda a vida e a não ver seja quem for, e asseguro-te que seria melhor para ti não amares mais ninguém. Poderias contentar te com uma paixão menos ardente que a minha? Talvez encontrasses mais beleza (houve um tempo, no entanto, em que me dizias que eu era muito bonita), mas não encontrarias nunca tanto amor, e tudo o mais não é nada. (...)

Soror Mariana Alcoforado

Eu tinha menos de 20 anos, isso é certo, talvez 17, já não importa. De livro na mão deitei-me, noite cerrada. A luz era fraca, mas eu lia sempre assim, já não me fazia diferença.
Acho que são 5 as cartas. Num crescendo de dor e desespero. De quem sentiu para poder escrever e, mais tarde, de quem leu, de mim também.
Na última carta já a dificuldade era imensa para conseguir perceber as letras. As lágrimas pareciam rios. Rios no inverno, não como o Guadiana, vizinho de Soror Mariana, no verão.
Chorei por ela, com ela, por mim. Convulsivamente. Empenhada em abafar os sons desse choro descontrolado para não acordar os meus pais, no quarto ao lado.
Foi esse o meu choro mais profundo, o mais sofrido, o mais liberto e o mais libertador. Não voltei a chorar assim.
(Neste, meu amigo, não senti a dormência nos dedos, a do orgasmo, lembras-te?)
Não voltei a relê-las. Não de um fôlego, quem seria capaz?
Hoje, quando a caminho da aldeia faço um desvio e passo junto à casa Alcoforado, mais do que quando passo no museu e olho a janela por onde Mariana via passar o seu cavaleiro de Chamilly, fico constrangida. Sonho com um bafejo de sorte que me permitisse comprar aquela casa, mesmo sabendo que não sou merecedora dela. Não mais do que o cavaleiro foi merecedor do amor de Mariana.
Será natural às mulheres alentejanas amarem assim? Não foi a Florbela Espanca (Mas que me importa a mim que me não queiras, Se esta pena, esta dor, estas canseiras, Este mísero pungir, árduo e profundo, Do teu frio desamor, dos teus desdéns, É, na vida, o mais alto dos meus bens?É tudo quanto eu tenho neste mundo?) a sua mais soturna prova? Não somos ainda muitas de nós seu testemunho?

nuances

Estar em alguém não é o mesmo que estar com alguém. Assim como saber boiar não é saber nadar. E amar não é ser amado. E estar feliz não é ser feliz. E querer não é poder.

29 de abril de 2008

idiossincrasias

- Estás chateada?
- Não...
- Mas estás com cara disso.
- Mas não estou.
- Então, o que se passa?
- Nada...
- Disse alguma coisa que não devia?
- Não...
- Fiz alguma coisa que não devia?
- Não...
- Devia ter dito ou feito alguma coisa que não fiz ou não disse?

Mas porque é que os homens em vez de perguntarem se estamos chateadas, ou tristes, ou zangadas, ou magoadas, ou simplesmente melindradas, não páram para pensar um bocadinho no que fazem, no que dizem, no que não fazem e deviam fazer e no que não dizem e deviam dizer? Temos de explicar tudo?
(pois, eu sei, um homem responderia: "Mas porque é que as mulheres não dizem logo de uma vez, sem que a gente tenha sequer que perguntar, o que raio as chateia?" Mas isso não teria sal nenhum, pois não?)

gramatical-mente

No princípio era o verbo, o verbo eu-não-sou-daqui-estou-só-a-ver-passar-comboios.
Depois continuou a ser o verbo, o verbo deixa-lá-ver-o-que-isto-vai-dar.
Depois outro ainda, o verbo espera-lá-onde-é-que-me-estou-a-meter.
Depois outro verbo, o verbo isto-não-estava-nos-meus-planos.
A seguir ainda outro para conjugar, o verbo eu-sabia-lá-se-foi-o-sossego.
Depois o verbo apanhada-na-curva-da-insegurança-rodoviária.
Mais uns dias e o verbo malditas-insónias-malditos-sonhos-malditas-dúvidas-maldito-éter-em-que-me-movo.
Para atrapalhar mais ainda, chegou o verbo dias-tão-absolutamente-felizes-não-deviam-ser-seguidos-por-atitudes-nem-palavras-nem-planos-desajustados.
Felizmente a seguir virá o acordo. Ortográfico, obviamente.

o gato da alice



(não sei onde raio ouvi isto, mas tem o seu quê, tanto quanto as toneladas de frases feitas que por aí circulam)

"O importante na imagem é como ficas; não quem está ao teu lado nem o pano de fundo. O que importa é se estás a sorrir."

28 de abril de 2008

terapias

Não sei até que ponto posso tomar como certo o que me disse a Débora, a minha psicóloga, na medida em que nem a ela me expus completamente.
Mas disse-me algumas coisas que posso juntar àquelas que colecciono para me condicionarem. Disse-me que as minhas relações emocionais têm um prazo de 3 anos. Tem batido certo, apesar de ela me dizer que isto se deve ao facto de a minha mãe ter voltado a trabalhar quando eu tinha essa idade, o que eu acho uma perfeita treta. Gostava de um dia saber contrariar este prazo, de poder mostrar a mim mesma que sei ficar numa relação, se bem que à medida que envelheço, apuro os meus defeitos e mais difícil será que isto aconteça. Sei como teria que agir o homem que me quisesse consigo, mas não lho poderia dizer, isso faz parte do que espero dele.
Também me disse, a Débora, que eu quero a alma dos outros. Cheguei a ficar aborrecida com ela, por isso. Também cheguei a divertir-me. Finalmente penso nisso a sério. E penso naquele exercício que fazíamos nas aulas de teatro, com o Rogério de Carvalho. Alguém se colocava a meio da sala. Eu encostada a uma das paredes. Depois eu tinha que correr, de olhos fechados, na direcção dessa pessoa que me seguraria. Essa pessoa, porém, quando eu fechava os olhos, recuava para o outro extremo da sala. Eu tinha medido a distância, claro. E a meio da sala abrandava à espera que me segurassem. Abria os olhos, a pessoa estava ainda distante, mas de braços estendidos para mim. Eu tinha que repetir o exercício. Já sabia da rasteira, mas mesmo assim era-me impossível confiar. Precisava que me apanhassem antes, mas essa não era a regra do jogo.
Era isso provavelmente o que a Débora queria dizer. Que eu precisava que me tirassem todas as dúvidas, todos os receios, repetidamente, com vontade, com provas, para que não recuasse antes do tempo. Que as regras se alterassem, que se adaptassem às minha necessidades, às minhas inseguranças.
Se calhar, querer a alma dos outros, passa por isto.

27 de abril de 2008

o homem que estendia roupa olhando o rio

Eu não morava ali, mas era como se morasse, que às vezes a gente sente que a nossa casa é olhar uma pessoa.
Nas tardes quentes gostava de o ver, alheio às pessoas, por momentos apenas o rio, a ponte, os telhados das outras casas.

De longe via-lhe os olhos escuros e densos. As mãos que prendiam a roupa com molas de plástico. Seriam mãos de afago? Seriam olhos capazes de dizer amor ou paixão?

A corda da roupa não gemia e eu ouvia apenas os pássaros nas nespereiras, em baixo, e uma espécie de queixume que me chegava da ponte. Ou então, não ouvia nada e apenas imaginava. Como imaginava o homem a enlaçar uma mulher de quem gostasse, a encostá-la à varanda quente, a sussurar-lhe que gostava de a ter ali.

Às vezes há momentos quase perfeitos.


A última elegia (V)


O L
O F E S
R S H E
O OFC A

Greenish, newish roofs of Chelsea
Onde, merencórios, toutinegram rouxinóis
Forlornando baladas para nunca mais!
Ó imortal landscape
no anticlímax da aurora!
ô joy for ever!
Na hora da nossa morte et nunc et semper
Na minha vida em lágrimas!
uer ar iú
Ó fenesuites, calmo atlas do fog
Impassévido devorador das esterlúridas?
Darling, darkling I listen...
"... it is, my soul, it is
Her gracious self..."
murmura adormecida
É meu nome!...
sou eu, sou eu, Nabucodonosor!
Motionless I climb
the wa

t

e

r

Am I
a Spider?
Am I
a Mirror?
Am I s
an X Ray?
No, I'm the Three Musketeers
rolled in a Romeo.
Vírus
Da alta e irreal paixão subindo as veias
Com que chegar ao coração da amiga.
Alas, celua
Me iluminou, celua me iludiu cantando
The songs of Los; e agora
meus passos
são gatos
Comendo o tempo em tuas cornijas
Em lúridas, muito lúridas
Aventuras do amor mediúnico e miaugente...
So I came
- from the dark bull-like tower
fantomática
Que à noite bimbalha bimbalalões de badaladas
Nos bem-bons da morte e ruge menstruosamente sádica
A sua sede de amor; so I came
De Menaipa para Forox, do rio ao mar - e onde
Um dia assassinei um cadáver aceso
Velado pelas seis bocas, pelos doze olhos, pelos centevinte dedos espalmados
Dos primeiros padres do mundo; so I came
For everlong that everlast - e deixa-me cantá-lo
A voz morna da retardosa rosa
Mornful and Beátrix
Obstétrix
Poésia.
Dost thou remember, dark love
Made in London, celua, celua nostra
Mais linda que mare nostrum?
quando early morn'
Eu vinha impressentido, like the shadow of a cloud
Crepitante ainda nos aromas emolientes de Christ Church meadows
Frio como uma coluna dos cloisters de Magdalen
Queimar-me à luz translúcida de Chelsea?
Fear love...
ô brisa do Tâmisa, ô ponte de Waterloo, ô
Roofs of Chelsea, ô proctors, ô preposterous
Symbols of my eagerness!
- terror no espaço!
- silêncio nos graveyards!
- fome dos braços teus!
Só Deus me escuta andar...
- ando sobre o coração de Deus
Em meio à flora gótica... step, step along
Along the High... "I don't fear anything
But the ghost of Oscar Wilde..." …ô darlingest
I feared... A ESTAÇÃO DE TRENS... I had to post-pone
All my souvenirs! there was always a bowler-hat
Or a POLICEMAN around, a streched one, a mighty
Goya, looking sort of put upon, cuja passada de cautchu
Era para mim como o bater do coração do silêncio (I usedTo eat all the chocolates from the one-penny-machine
Just to look natural; it seemed to me que não era eu
Any more, era Jack the Ripper being hunted) e suddenly
Tudo ficava restful and worm... - o sííííííííí Lvo da Locomotiva - leitmotiv - locomovendo-se
Through the Ballad of READING Gaol até a vísão de
PADDINGTON (quem foste tu tão grande
Para alevantares aos amanhecentes céus de amor
Os nervos de aço de Vercingetórix?). Eu olharia risonho
A Rosa-dos-Ventos. S. W. Loeste! no dédalo
Se acalentaria uma loenda de amigo: "I wish, I wishI were asleep". Quoth I: - Ô squire
Please, à Estrada do Rei, na Casa do Pequeno Cisne
Room twenty four! ô squire, quick, before
My heart turns to whatever whatsoever sore!
Há um grande aluamento de microerosíferos
Em mim! ô squire, art thou in love? dost thou
Believe in pregnancy, kindly tell me? ô
Squire, quick, before alva turns to electra
For ever, ever more! give thy horses
Gasoline galore, but do take me to my maid
Minha garota - Lenore!
Quoth the driver: - Right you are, sir.
*
O roofs of Chelsea!
Encantados roofs, multicolores, briques, bridges, brumas
Da aurora em Chelsea! ô melancholy!
"I wish, I wish I were asleep..." but the morning
Rises, o perfume da madrugada em Londres
Makes me fluid... darling, darling, acorda, escuta
Amanheceu, não durmas... o bálsamo do sono
Fechou-te as pálpebras de azul... Victoria & Albert resplende
Para o teu despertar; ô darling, vem amar
À luz de Chelsea! não ouves o rouxinol cantar em Central Park?
Não ouves resvalar no rio, sob os chorões, o leve batel
Que Bilac deitou à correnteza para eu te passear? não sentes
O vento brando e macio nos mahoganies? the leaves of brown
Came thumbling down, remember?
"Escrevi dez canções...
... escrevi um soneto...
... escrevi uma elegia..."
Ô darlíng, acorda, give me thy eyes of brown, vamos fugir
Para a Inglaterra?
"... escrevi um soneto...
... escrevi uma carta..."
Ô darling, vamos fugir para a Inglaterra?
..."que irão pensar
Os quatro cavaleiros do Apocalipse..."
"... escrevi uma ode..."
Ô darling!
Ô PAVEMENTS!
Ô roofs of Chelsea!
Encantados roofs, noble pavements, cheerful pubs, delicatessen
Crumpets, a glass of bitter, cap and gown... - don't cry, don't cry!
Nothing is lost, I'll come again, next week, I promise thee...
Be still, don't cry...
... don't cry
... don't cry
RESOUND
Ye pavements!
- até que a morte nos separe
ó brisas do Tâmisa, farfalhai!
Ó telhados de Chelsea,
amanhecei!



Londres, 1939
Vinícius de Moraes

24 de abril de 2008

fracturante

As duas almas em guerra. As dicotomias. O corpo partido pelo meio. O coração também. Um pé de cada lado da linha. O equilíbrio precário. A rosa e o espinho. O claro e o escuro.
Há forçosamente um lado mais forte, o que vencerá no final. Saber qual pode ser o trabalho da vida, à falta de melhor.
Noite ou dia, solidão ou multidão, amor ou ideais, silêncio ou entusiasmo, punho erguido ou mãos nos bolsos. O tempo o dirá.

Liberté, Paul Eluard

Sur mes cahiers d'écolier
Sur mon pupitre et les arbres
Sur le sable sur la neige
J'écris ton nom
Sur toutes les pages lues
Sur toutes les pages blanches
Pierre sang papier ou cendre
J'écris ton nom
Sur les images dorées
Sur les armes des guerriers
Sur la couronne des rois
J'écris ton nom
Sur la jungle et le désert
Sur les nids sur les genêts
Sur l'écho de mon enfance
J'écris ton nom
Sur les merveilles des nuits
Sur le pain blanc des journées
Sur les saisons fiancées
J'écris ton nom
Sur tous mes chiffons d'azur
Sur l'étang soleil moisi
Sur le lac lune vivante
J'écris ton nom
Sur les champs sur l'horizon
Sur les ailes des oiseaux
Et sur le moulin des ombres
J'écris ton nom
Sur chaque bouffée d'aurore
Sur la mer sur les bateaux
Sur la montagne démente
J'écris ton nom
Sur la mousse des nuages
Sur les sueurs de l'orage
Sur la pluie épaisse et fade
J'écris ton nom
Sur la vitre des surprises
Sur les lèvres attentives
Bien au-dessus du silence
J'écris ton nom
Sur mes refuges détruits
Sur mes phares écroulés
Sur les murs de mon ennui
J'écris ton nom
Sur l'absence sans désirs
Sur la solitude nue
Sur les marches de la mort
J'écris ton nom
Sur la santé revenue
Sur le risque disparu
Sur l'espoir sans souvenir
J'écris ton nom
Et par le pouvoir d'un mot
Je recommence ma vie
Je suis né pour te connaître
Pour te nommer
Liberté

23 de abril de 2008

abril, 1974

Nasci numa família de gente de trabalho. As vivências que me foram sendo contadas e as que me vi forçada a partilhar deram-me um certo tipo de consciência e visão do social que nunca me abandonaram.
O 25 de Abril de 1974 apanhou-me com 3 anos e meio. Tenho a sorte de não ter conhecido ou sentido na pele o antigo regime, a pide, o medo, as pesadas botas que pisavam pescoços e punhos cerrados, mas, por outro lado, acompanhei os meus pais nas lutas sindicais, nas greves, nos comícios, nas jornadas de trabalho, na construção das festas do Avante!, da Amizade, na distribuição de parques infantis feitos nas horas mortas dos metalúrgicos, nos bailes ao som dos Vermelhos, nas sessões de esclarecimento. Empunhei bandeiras, gritei de punho no ar exigindo o salário que não pagavam aos meus pais, chorei de raiva e de tristeza quando vi a polícia carregar sobre quem se manifestava, onde se incluíam os meus pais e seus camaradas, encurralando-os como animais.
O 25 de Abril está no meu imaginário, tanto como na minha consciência política, social e humana. Está nas primeiras canções que cantei, nos primeiros poetas por quem me apaixonei, nas primeiras festas onde cerrei os dentes e o punho e gritei que fascismo nunca mais. Está nas paredes do meu quarto de adolescente onde colava posters do Che Guevara e do menino da metralhadora em vez dos ícones pop da época. Está no Kuffieh que usei ao pescoço no inverno e à cintura no verão durante anos. Está na estante da sala dos meus pais onde imperava o vermelho das lombadas dos livros de Lénine, de Gorki, de Marx, de Álvaro Cunhal, na foice-e-martelo que desenhava na mala de cabedal que usava na escola.
O 25 de Abril, com tudo o que nos trouxe, está gravado no padrão deste pano de fundo que me forma.
34 anos passados, Abril não se cumpriu, mas não ficou por cumprir. Por nossa responsabilidade, por culpa do nosso comodismo e facilitismo, resta-nos a ilusão de que somos livres, porém as ilusões não nos fazem viver só por si mas sim como impulsionadoras para uma melhor e maior realidade.
Pelo sonho é que vamos. A nossa realidade, todavia, é bem diferente do que a sonhámos. Assinalar o 25 de Abril é agora um ritual em que se pretende perpetuar uma memória, como se tivéssemos de olhar para uma fotografia para recordarmos a cara da pessoa que amámos, é um ritual mais do que o afirmar de uma realidade, mais do que um bater o pé à direita. Dizia o poeta que as portas que Abril abriu nunca mais ninguém as fecha. Digo eu que se referia a sabermos que é possível lutar e vencer, mais do que à conquista em si mesma.
Mas digo também que nada está irremediavelmente perdido enquanto houver pessoas que mantêm acesa a chama da vontade de um mundo mais justo.

22 de abril de 2008

depois

Eu não acredito em bruxas, apesar de ter uma data delas, mas gosto da estética e da própria ideia.
Não acredito em fadas, mas gosto das asas da leveza.
Não acredito em dragões, mas gosto do porte e do poder.
Não acredito em cavalos alados nem em centauros, mas gosto da sensibilidade de uns e da virilidade de outros.
Não acredito em deus nenhum nem gosto do suposto conforto que oferecem.
Também não acredito em sonhos, ou melhor, não acredito que possam ser premonitórios. Apesar de a Flor ter sonhado com a morte do Pratas, pouco tempo antes de sabermos que o iríamos perder.
Todavia, há sonhos aos quais não posso fugir. De tal modo que já algumas decisões na minha vida forma tomadas na angústia da ressaca dos mesmos. Como quando matei personagens. Como quando deixei de confiar em alguém. Como quando o seu ambiente me ensombra dias seguidos.
Hoje tive um desses. Só não o conto aqui.

"Só". Não do livro mais triste que há em Portugal. Do Jorge Palma. De mim também.


o Che e a minha amiga Rosa


Também era Abril, nesse ano, mas um Abril diferente, num ano em que as estações ainda se cumpriam, e uma série de outras coisas também.

É de sorriso nos lábios que me diz: "Não passas de uma mulher soturna. Só teoria. Em que momento te esgueiraste de um concerto, de uma festa, de um bar para entrares no carro do homem que mais te agradou e te perderes nos apelos dos sentidos?"

Ainda tentei uma qualquer interjeição de indignação, mas ela atalhou: "Não, nem digas nada. Mesmo que o tenhas feito, de certeza que te puseste logo para ali a questionar tudo, a dramatizar, de certeza que o pobre há-de ter feito um gesto menos correcto, dito qualquer coisa fora do lugar. Olha, eu cá, não me dou a esses luxos. Vou. E indo, deixo-me ir. Percebes? Eu sei lá se algum dia hei-de querer mais do que isto. Nem tu sabes, afinal. Mas olha, foi de ti que me lembrei, eras tu quem deveria ter estado por cima dele, naquele carro apertado. Eras tu que te devias ter vindo, sem vizinhos que te controlassem os gemidos e os gritos. Eras tu que devias ter tido outra vez 20 anos, ou 30, ou 17. Eras tu que devias ter-lhe puxado a camisola, amarrotando-a nas tuas mãos. Eras tu que irias gostar dela."

Eu tenho lá paciência para ouvir as suas tangas. Espetei-lhe o dedo do meio em frente aos olhos, dei meia volta e fui ao supermercado, que já me faltam cebolas lá em casa.

21 de abril de 2008

as portas que abril abriu

Foram muitos os excessos, legítimos diria eu, que quem se viu privado de liberdade, quando a agarra, aferra-se a ela sem pensar se a violenta. Foram muitos os medos, as esperanças, as descobertas, muita a sede de viver os dias novos nascidos da noite do antigo regime.
Nesse Verão, em 1975, José Carlos Ary dos Santos escreveu este belíssimo poema, convicto, como muitos, de que não, não se fechariam de novo as portas.
Na semana em que se vai assinalar mais um dia da liberdade, aqui ficam transcritos alguns versos. Os restantes poderão ler-se aqui.


"revolução"


Fidel Castro, Mao Tsé-Tung, Lenine, Gandhi, Rosa Luxemburg, Luther King, Marx e Che Guevara. Todos juntos, representados por sósias, no novo anúncio da Renault. A campanha chama-se Revolução. O capitalismo a vencer mostrando como até da imagem de quem o combateu se faz dinheiro.

A revolução de que se precisa é outra.

redundante

Pailhão Atlântico e os GNR mais a GNR. A gente a sentir que tem outra vez 20 anos enquanto canta as Dunas, a Pronúncia do Norte, a Morte ao Sol. A gente a equilibrar cerveja e os putos a dançarem. Vale o que vale, vale uns sorrisos e a voz que se liberta.
Melhor, muito melhor, foi a noite seguinte. Jorge Palma, a preto e vermelho, cabelo desgrenhado, sorriso aberto, as canções do nosso imaginário, quase todas. Nem a que sei que é para mim ali faltou. Outra vez a plenitude, o agrado de quem não sai desiludido.
Para o Palma, deixo o texto da minha amiga Rosa, que publicou n' A FundaSão quando, também ela descobriu esta faixa escondida no album.
Vermelho redundante
O seu sorriso ficava assim uma espécie de sorriso de gato saído directamente do país das maravilhas, estonteantemente branco quase brilhando na penumbra da sala que o fraco vento da noite arrefecia, entrando devagar pela janela aberta.
Um sorriso de descoberta, pensou ela mais tarde. De empatia, tinha ele explicado.
A faixa, sempre a mesma, numa repetição sem cansaço, ia debitando os versos feitos à medida.
“Olha tu”, tinha ele dito, quando secando os suores e sossegando o peito e a pele, se mantinham calados, deitados no pedaço de chão ainda livre de roupas, sapatos, livros roubados à estante.
E ela tinha ficado como que a ver-se ao espelho, ouvindo a voz quente e boémia do homem que a cantava, a ela, de repente, do nada.
Por momentos o mundo pareceu-lhe imenso, a noite interminável e a felicidade possível.

18 de abril de 2008

menina mimada

Há dias em que nos mimam. Dias em que alguém é cavaleiro montado em cavalo cinzento e nos resgata da monotonia e nos leva a ver a chuva violenta entrecortada pelo sol brilhante. Dias em que chamam a nossa atenção para o rio que atravessamos todos os dias e às vezes nos esquecemos de ver. Dias em que alguém caminha de sorriso nos lábios pela calçada da baixa e nos dá a mão enquanto evitamos as poças de água no chão. Dias em que almoçamos sem tédio, com vontade de sorrir. Dias em que nos apetece brindar sem motivo. Ou com todos os motivos.
Thanks, my love :)

17 de abril de 2008

carolindeza (2)

A Carolina três mulheres num só
ar de menina sapiência de avó
luz da mulher
que se quer levar pela noite dentro
abrigada do vento
rosa-dos-ventos, caravela veloz
Carolindeza
você vem na correnteza
enredar-se em mim
enamorar-se de mim
o nosso folhetim
segue no próximo episódio
Tanto episódio
que azedou no final
o amor e o ódio
a situação trivial
que se repete
e a si mesmo se imita e desdobra
quando já pouco sobra
mas oh Carolina
sobra tanto de ti
Carolindeza
você vem de surpresa
alongar-se na cama
enrodilhar-se na cama
o nosso programa
segue dentro de momentos
Amores, amores vão
amores, amores vêm
mas a Carolina
há-de ser mais além
imprescindível presença
que o fogo e a terra condensa
dito da forma mais simples
faz-me bem
A Carolina
diz: já sei, não se usa
mas tu para mim
mesmo homem és musa
fazes-me rir
e do gosto, do gosto em que rias
nascem sabedorias
mas oh Carolina
sei mais coisas de ti
Carolindeza
coisas da natureza
inundada de sumo
iluminada de sumo
dito em resumo
ri melhor quem com teu rir rir
Rimo-nos juntos
já não morremos hoje
fomos a assuntos
desses de "tocar e foge"
tocamos longe
no fundo da proximidade
para lá da verdade
mas oh Carolina
verdadeiro em você
Carolindeza
e o padrão de beleza
que eu, a ser ditador
gostaria de impor
pensando melhor
dou-te o meu reino por um beijo
Amores, amores vão...
E assim que vejas
que o amor nos escapa
peço que sejas
mais papista que o papa
papaguear
juramentos de amor e ternura
é fazer fraca figura
fraca figura já fizemos à vez
Carolindeza
você vem de certeza
para me açambarcar
para me assarapantar
pró seu lugar!
que a ordem tem de ser mantida
Ordem mantida
não ganhamos pró susto
fomos a vida
quase a mal, quase a custo
quero-te perto de mim
e sei que vice-versa
e tudo o mais é conversa
mais oh Carolina
vice-versa da luz
Carolindeza
você voltou em beleza
consentir-se no que há
compartilhar-se no que há
descobrimos já
as nossas sete diferenças
Amores, amores vão...

carolindeza

Oito anos faz a minha Carolina, menina-tão-grande.
Minha amiga, minha cúmplice, tão dependente me deixa dos seus sorrisos, da sua voz terna, das suas palavras bonitas.
- Mãe, porque é que estás triste?
- Eu não estou triste.
- Estás sim. Conheço os teus olhos quando estão tristes, e agora estás.
E eu abro o sorriso para que veja como a amo e como a sua presença me alimenta.
É a menina que quis ter, é a companheira que me dá a mão naquilo que é importante para mim e que me chama para junto de si quando quer partilhar o que a faz feliz.
Gravámo-nos quando nos primeiros dias mamava de olhos fixos em mim para já não nos perdermos.
Agora cresceu, já ocupa quase a cama toda, mas quando dorme e eu me levanto de noite para a olhar, é o meu bebé quem ali sonha, pequenina e indefesa, cansada de fantasias e brincadeiras, de sonhos, de contas de multiplicar, de composições sobre a primavera.
É o meu bebé quando nos sentamos na mesa da cozinha e espalhamos tintas em telas, folhas de papel, espelhos, pedaços de madeira. É o meu bebé quando à noite lhe leio histórias e me pergunta como é possível que se guardem estrelas num Banco. É o meu bebé quando canta para as suas bonecas as canções de embalar que fiz só para ela.
Agora cresceu e há-de crescer muito mais. Há-de fazer-se uma mulher inteligente, independente, terna e honesta. E eu hei-de ver sempre nela a minha menina, mesmo quando se zangue comigo, mesmo quando bater a porta.
Mas por agora estamos sossegadas. Faz oito anos. E o amor que eu suponho imenso cresce sempre mais.
Que seja feliz, que não perca o lindo sorriso que tem, que o brilho lhe volte ao olhar mal esmoreça é o que posso desejar-lhe.

16 de abril de 2008

máscaras

Já me habituei a ser como sou, dizia-me ela, mas isso não quer dizer que carregue mais facilmente o meu próprio peso.
E continuou. Se pudesse e fizesse algum sentido, escolheria ter nascido num outro mês, sob outra lua. Num dia de verão, à hora de almoço, por exemplo. A todos aqueles de quem poderia ter herdado genes leves, sorridentes e optimistas, virei costas nessa noite de outono em que nasci. E agarrei com unhas e dentes as trevas, a complexidade incontornável e o dramatismo.
Já em criança era assim, sabias? De repente uma nuvem negra, de repente o silêncio, o isolamento, às vezes até chorava e não sabia explicar porquê.
Houve um dia em que decidi vestir-me de outras cores, a ver no que dava. Também decidi começar a falar muito, mesmo do que não interessava a ninguém, nem a mim mesma. Falava alto para abafar dúvidas, carregava a voz de entusiasmo. Também comecei a rir, muito e com vontade. Aos traços de lábios tristes, juntei as rugas de rir ao canto dos olhos. Equilibrei as olheiras com bâton. Deixei crescer o cabelo e pintei-o de preto, fiz furos nas orelhas e no umbigo.
Dei-me a quem me quis, muito mais do que aos que eu queria. Passei noites fora de casa e ri até de manhã. Deixei os livros nas estantes e tirei a caneta da mala. Durante meses não li nem escrevi nada. Durante meses interditei-me de pensar e de sentir. Até ao dia em que me olhei ao espelho e não me reconheci. Nesse dia procurei o equilíbrio. Tinha de haver equilíbrio, algures.
Mas isto é como o azeite, diria a minha mãe, não há como escondê-lo debaixo de uma camada de água fresca.
Agora sou estre frasco de água e azeite, duas de mim que não se misturam, que não se conjugam. Sou esta que se mostra aos bocadinhos, um bocadinho diferente para cada um, nunca ninguém vendo tudo. Um destes dias, num jantar, alguém me disse "Tu tens dias escuros? Em tantos anos nunca te vi sem que estivesses a rir e a falar em todas as direcções." Ao meu lado alguém respondeu "Isso é porque nunca a viste de janela fechada, sentada sozinha, no escuro." Nunca ninguém vê tudo, mas para quê dizê-lo?

marco do correio - carta segunda

(carta de um lobo a uma fada - equação improvável)


Maio de 2002


Maio. A chuva ainda está cá. Teimosa sem dúvida. Quase invisível, quase ausente, quase despercebida. São os vidros que a traem fixando-a em pequenas gotas. Daqui onde escrevo, vejo-a polvilhada na minha janela, gotículas que lentamente engrossam e que, sem qualquer aviso, escorrem em ténues regatos sem rumo nem foz visível.
Gosto desta fragilidade que há em todas as coisas. Dá-nos o sentido da relatividade, da perspectiva.
Dizem que escolhemos o nosso próprio caminho. Já acreditei nisso, mas já não sei se é assim. Acho que nos põem caminhos à frente e apenas nos é dado escolher se os queremos percorrer ou se esperamos que nos mostrem outros. Será que temos o controlo sobre a nossa vida? E ainda que assim fosse, será que teríamos a coragem de a viver?
Tornámo-nos conservadores. Todos. Estamos agarrados a pequenas certezas, pequenas verdades, num mundo confortavelmente cheio de referências, de estabilidade e de suadas conquistas que prezamos acima de tudo. É isso no fundo o que queremos, o nosso pedaço de normalidade que nos torne reconhecidos e aceites na nossa grande colmeia. Até os lobos sabem disso! O que seria de nós se as ovelhas se organizassem e nos atacassem? Mas isso não seria próprio de ovelhas...
(…)Sabes, às vezes tento imaginar-te agarrando os fragmentos que me ofereceste: as palavras que escreves, a tua voz, um cigarro aceso preso entre dois dedos, uma estante de livros imaginários (quantos deles já terei lido?), um corpo que se descobre anichado num sofá(…). É engraçado este véu misterioso que nos cobre e só nos deixa tocar ao de leve no mundo um do outro.
O meu mundo - como o teu - tem uma solidão imensa que eu aprendi a amar. Devolve-me a consciência de mim próprio, numa quietude que não é perturbada pelo ruído dos outros. Já não tenho medo dela. Sei quando chega, os seus truques, quase que sei quando parte. Como escreveu um colega meu, o José Riço Direitinho, num conto belíssimo: “... mas estamos sempre sós... de resto somos assim... sós... e isso não tem remédio, nunca...”. Só temos de aceitar isso, não como uma fatalidade, mas como um sinal da nossa complexidade emocional.
Boa noite fada.

15 de abril de 2008

o passado como uma casa


Sentada à minha frente, na esplanada, óculos escuros a esconderem os olhos pesados, cigarro a disfarçar o tremor das mãos e os lábios tristes, ia falando. Dos homens que a tinham marcado, como se só essas marcas, como se só essas histórias fizessem dela quem hoje é.
Eu sei melhor, mas deixei-a falar.
Do R(.), o seu primeiro amor. Da primeira vez que se deitou nua com um homem. Da posse doentia que não lhe deixava espaço sequer para ir olhando pela janela do autocarro, querendo-a de olhos baixos e roupa larga. Da culpa quando sentia prazer. Da bofetada que lhe partiu os óculos de estudante. Do medo de dizer qualquer coisa que o melindrasse. Da marcação cerrada. Do machismo. Da juventude mal perdida.
Depois, do E(.), da paixão exacerbada que lhe tirou o sono, a fome e o sossego. Que a deixava pregada em casa à espera de um telefonema. De como lhe parecia que o via em cada homem com quem se cruzava. Da angústia da frieza desse homem que só mais tarde, tarde demais, se renderia aos seus pés. Do brilho dos seus olhos verdes. Do seu sabor a sal. Do seu ventre liso e da pele bronzeada. De como guardou religiosamente o pouco que lhe deu. De como se sentiu perdida quando deixaram de se ver. De como se vingou de cada vez que, mais tarde, tarde demais, se encontravam e ela já não sentia nada por ele.
Depois falou do M(.). Da cumplicidade, dos risos, das noitadas, da sensação de liberdade. Dos amigos. Das aventuras. Das férias. Das descobertas. De como o traíu com o E(.). De como se sentiu mal. De como nada voltou a ser o que era. De quando ele lhe mentiu, pondo em causa uma parte importante da sua segurança. De quando lhe disse que não queria voltar a vê-lo e ele lhe roubou um beijo, na despedida. De como esse beijo ainda a deixa zangada.
Depois, do P(.). Da sensação de sonho tornada realidade. De como pensou que era bom demais para ser verdade. De como se deixou ir nesse conforto. De como todos os seus medos desapareceram. De como acreditou em fazer planos. De como os pôs em marcha. De como o traíu. De como se sentiu culpada. De como se sentiu mal. De como saíu de mais uma história por não saber como ficar.
Depois, baixinho, falou-me do outro P(.). Da ilusão de paixão. Da solidão que abriu a porta ao engano. De mais perseguição doentia. De ter medo de sair à rua e tê-lo à sua espera. Da fuga em carro emprestado para não ser seguida. Das emboscadas.
Depois falou-me do J(.). De como, ainda assim, era o único que a fazia arrepender-se. De como não tinha valido a pena. De como não tinha nada a guardar. De como nem vontade tinha de me contar dos silêncios, das discussões intermináveis, da presença imposta a que não sabia como fugir.
Apagando o cigarro, disse-me que mais valia que a sua história fosse feita só dos outros, dos que nem guardaram nome, dos que passam ao de leve, que mais valia que não fosse mulher de se apaixonar, ou então que não fosse mulher de se cansar, ou que não fosse mulher de ter medo, ou enfim, que não tivesse memória.
Eu, que nem sequer tenho nada de memorável para contar, olhei-a enquanto acendia outro cigarro. As mãos ainda lhe tremiam e os lábios eram ainda tristes. Lembrei-me daquilo que não me chegara a contar, adivinhei-lhe as cicatrizes, quis mimá-la.
Mas há mulheres a quem é impossível fazer-se bem. E fiquei quieta.

como dantes

Saí à hora de almoço, como dantes, deixando o escritório para trás, enganando a preguiça. Dei umas voltas, poucas, à procura de lugar, estacionei, andei um pouco a pé, sempre ao sol. Cruzei-me com gente que não conheço, martelei a calçada lisboeta com os tacões das minhas botas recusando pertencer-lhe, fumei um cigarro sentada nas escadas de degraus largos. Tirei o casaco preto e encarei o sol de frente. Fiz uma pausa para falar com aqueles de quem gosto, pelo telefone. Espreguicei-me.
A cidade passa ao lado, indiferente, não é a amante dos poemas. Mas não faz mal. Às vezes é bom que ninguém nos conheça.

14 de abril de 2008

marco do correio - carta primeira

(carta de um soldado na véspera de embarcar para Moçambique - guerra colonial)
Évora, 20-5-965
Querido amor.
Desejo que este postal te vá encontrar cheia de felicidade.
Querida, encontro-me em Évora, pela última noite, num café a beber umas imperiais com o Fernando, o Bisnaga, etc. De momento lembrei-me de mandar-te um postal ilustrado com algumas lindas vistas desta cidade alentejana.
Como já te tinha dito, foi hoje a nossa festa de despedida e esta noite é a partida para Lisboa. devemos embarcar amanhã, sexta-feira, talvez pelas 12 ou talvez às 13.
Pronto minha querida, o vagar é pouco.
Adeus, felicidades.
António

o meu avô

E porque faz hoje 92 anos que o meu avô nasceu, e porque mantém a sua lucidez, e porque mantém o sentido de humor, e porque sinto por ele um carinho imenso, e porque ontem lhe dei um beijo mas hoje não posso, e porque tivémos ao longo dos anos fantásticas conversas sentados lado a lado no seu alpendre, aqui fica mais um mimo, dos muitos que lhe dou. Parabéns.

13 de abril de 2008

alma salvada 3

A viagem era sempre um acontecimento. Partíamos de manhã bem cedo, toda a gente estava pronta às seis da manhã. Não tínhamos muito dinheiro, pouca gente tinha, mas penso que não se era, em geral, tão cinzento quanto hoje.
A irmã do meu pai vivia numa casa paredes-meias connosco. Era a minha tia Maria, casada com o meu tio Manel e a minha prima-quase-irmã Maria Manuel, sendo que este nome não era necessariamente um resultado dos nomes do pai e da mãe, mas sim uma escolha peculiar da minha tia Maria. Esta minha tia era a minha segunda mãe, creio poder dizê-lo, mas posso explicá-lo mais tarde.
Partíamos, então, os seis, antes ainda do sol nascer, no velho e resistente Fiat dos meus pais, o meu pai e o meu tio sentados à frente, nós, as mulheres e crianças atrás. Eu sentava-me entre as pernas da Maria Manuel, cinco anos mais velha e alta do que eu. Eram pessoas simples, estes adultos, sem grandes ambições, mas de coração grande e aberto, generosos, amigos. A presença do meu tio Manel sempre dispensou auto-rádio. O meu tio tinha sempre histórias para contar, correm-lhe no sangue mil histórias contadas e recontadas, mas na ânsia de as contar ou de chegar ao fim para contar outra vez ainda, atropelava e suprimia metade das sílabas, de tal modo que nós nos ríamos por conhecer antecipadamente as histórias, não exactamente por as termos acabado de ouvir. Mais tarde dei ao meu tio um livro em branco para que ele registasse toda a sua empírica sabedoria, as histórias vividas, as que lhe foram contadas, as quadras populares que sabia de cor e que tinha para cada ocasião, os provérbios muito próprios, os jogos de raciocínio e perspicácia repetidos nos intermináveis serões, histórias, todas elas de alguma forma, de sobrevivência que ele, na sua eterna modéstia arrumou a um canto, algo constrangido, mas determinado a não escrever nele uma única palavra.
Eu e a minha prima Maria Manuel, as duas crianças, cantávamos. Cantávamos imenso, a partir de qualquer deixa, por qualquer motivo. Qualquer coisa nos lembrava, a um tempo, a mesma canção. À falta dela, em alguns momentos, chegávamos mesmo a inventar as nossas próprias canções, sem jeito nenhum, mas que contribuíram para criar uma amizade que resistiu a todas as distâncias, a todas as contrariedades, a todas as desatenções. Não sei como tinham paciência para nós nas quase quatro horas que demorava a viagem. Não havia auto-estradas como hoje, de qualquer modo evitávamos o curto troço que poderíamos utilizar, afinal o dinheiro era contado.
Mais ou menos a meio do caminho parávamos, abríamos o porta-bagagens e apareciam sanduíches com queijo ou linguiça, termos com leite achocolatado e café, abria-se um dos garrafões de vinho tinto para os homens, por vezes havia bolo de mel, cozido em tabuleiro, cortado aos cubos e polvilhado com açúcar grosso. Tudo nos sabia a paraíso, a própria viagem, ou o seu destino, se encarregava disso. Ir à terra era um acontecimento inigualável, onde cabiam o reencontro com as primas, os avós paternos, os únicos que sempre tive, que nos esperavam com o lume aceso na cozinha e o peito aberto e disponível, os cheiros da velha casa, os beijos obrigatórios a todas as velhas mulheres que encontrávamos nas ruas e que, curiosamente, eram todas, de certa forma, ainda nossas primas.
Quando retomávamos a viagem, com o pequeno-almoço entretanto tomado em pé, junto ao carro, a certeza de que tínhamos por percorrer apenas a última metade da viagem renovava-nos o ânimo e a vontade de cantar. A paisagem modificava-se, o sol brilhava agora com força, aquecendo-nos dentro do carro, começava a planície, as terras cultivadas, os montes quase dolorosamente caiados de branco, as pasmadas vacas com estranhos pássaros pousados nelas, cujos nomes e funções nos eram ensinados. E bastava falarem-nos do carraceiro, aquele pássaro que catava e comia as carraças que se acomodavam no dorso das vacas para se lembrarem, por exemplo, daquele vizinho que apesar de crescido não conseguia articular correctamente as palavras, e lá vinha a história desse rapaz que não tinha conseguido passar da primeira classe na escola, e que se referia a isso auto intitulando-se de "putente, sempre putente", numa alusão às vezes que tinha sido obrigado a repetir o ano, sem o ter conseguido concluir com sucesso. E não valia a pena lembrarmo-nos de outras histórias e pedirmos que no-las contassem. As histórias surgiam, como tudo na nossa família, num contexto muito próprio, nada acontecia a pedido, não teria feito sentido.
Nos últimos dez quilómetros da viagem já não tínhamos posição no carro desconfortável, com o aquecimento avariado por nunca ter sido usado. Pelo vidro aberto chegava-nos o cheiro a terra, a lume, àquilo que não sabíamos então ser a base, o sentido das nossas vidas.
A aldeia fica numa cova, não se vê senão quando lá chegamos. Diz-se que o seu nome -Salvada- se deve a ter escapado a uma invasão de forasteiros que por não a terem visto, não a atacaram. Foi salva pela sua localização. Esta história, apesar de um pouco mais complexa, foi-me contada assim, de modo simplificado pelo meu avô, numa das raras vezes em que contava mais do que perguntava. Pedíamos então ao meu pai que seguisse pela única avenida da aldeia, que era o caminho mais longo, quase num adiar do prazer certo que era chegarmos a casa dos meus avós.
O meu pai estacionava e nós, as crianças, saíamos do carro a correr para entrar em casa dos meus avós. Os meus avós, a minha tia Aldinha e as minhas primas já atropelando-se na soleira da porta com um prazer em tudo igual ao nosso. Mas antes de entrarmos ainda nos demorávamos a cumprimentar as vizinhas atraídas à rua pelo ruído do motor do carro.
A primeira coisa que a minha prima Maria Manuel fazia era ir espreitar o galinheiro. Entrava e ia ver se havia ovos frescos. Habituou-me ao mesmo ritual até que a minha avó ficou velha demais para cuidar das galinhas. Depois do quintal, voltávamos à casa e fazíamos a ronda pelos quartos, espreitávamos para ver se a cama onde dormiríamos já estava feita. Tinha sido a primeira cama dos meus pais, a única de madeira naquela casa, todas as outras eram muito mais antigas, de ferro, meticulosamente pintadas de branco, com o latão cuidadosamente areado pela minha avó, toda a casa impecavelmente caiada de branco, por dentro e por fora. A cama tinha um colchão que hoje é considerado do pior que pode haver, demasiadamente fofo, tão fofo que a primeira a deitar-se se afundava e era preciso que a outra viesse contrabalançar o equilíbrio.
A cozinha foi sempre a sala onde nos reunimos todos. A lareira e o espaço assim o exigiam. As cadeiras estiveram sempre dispostas em volta da cozinha, encostadas à parede, numa atitude de boas-vindas, de receptividade, de acolhimento. Sentávamo-nos todas, a minha mãe, a minha avó, as minhas tias e as minhas primas, toda a gente a falar por cima de toda a gente. O meu avô ia sentar-se no alpendre, a enrolar um cigarro. O meu pai e o meu tio Manel entravam de novo no carro e iam ter com o meu tio Chico, que trabalhava na Cooperativa Agrícola.
Abriam-se as malas, os sacos e começavam a sair as roupas que tinham pertencido primeiro à Maria Manuel, depois a mim e que eram agora entregues à minha prima Fatinha, na esperança de que ainda ficassem em condições de ser usadas pela minha prima Sónia, a mais nova das quatro, do lado paterno.
Não esperávamos pela noite de Natal para abrirmos os presentes, era logo à chegada que o fazíamos. Enquanto a minha mãe e a minha tia iam entregando o que tinham trazido às minhas primas mais novas, a minha avó levantava-se penosamente da cadeira, junto ao lume, dirigia-se ao quarto onde dormia desde sempre com o meu avô, ouviamo-la abrir a pesada gaveta da cómoda e reaparecia com uma nota igual para cada uma de nós. Eu nunca tive mesada, não tinha dinheiro para gerir. Quando precisava de alguma coisa pedia aos meus pais, e dentro das suas fracas capacidades lá faziam face, ou não, aos meus pedidos. O dinheiro que recebia da minha avó duas vezes por ano, no Natal e no meu aniversário, era por isso cuidadosamente guardado para comprar aquele ou aqueles livros a que não conseguia mesmo resistir. A escolha era criteriosa porque o dinheiro era pouco. Invariavelmente recebia das minhas tias lençóis, toalhas, panos de cozinha, todo o tipo de utilidades que julgavam, nos seus corações generosos mas muito pouco ambiciosos, indispensáveis para um enxoval decente. Claro que numa idade em que ainda mal se pensa em namoricos, todas essas coisas nos pareciam absolutamente absurdas e despropositadas.
Entretanto a conversa seguia com as notícias de quem tinha morrido, de quem tinha casado, de quem tinha ido de visita à terra, ou de quem se tinha reencontrado mais longe, perto das novas casas, aquelas que tinham já as suas próprias novas histórias. Era nessa altura que eu ia sentar-me junto do meu avô, cada um de nós escolhendo as cadeiras mais baixas, que nos deixavam sentados quase junto ao chão. O meu avô teve problemas de audição muito cedo, talvez por isso tenha desenvolvido um certo tipo de curiosidade descarada que o deixava à vontade para fazer perguntas, todo o tipo de perguntas e eu, que sempre gostei muito de conversar, sem precisar de recorrer à paciência, respondia-lhe a tudo, com pormenores. Falava-me então das suas preocupações com alguma de nós, com a que tinha sido obrigada a repetir o ano escolar, com a que não tinha vontade de estudar, expressava a sua opinião sobre o trabalho do meu pai, perguntava se continuavam as greves. Ouvia muito mal, mas encostava o ouvido à pequena telefonia do alpendre para se manter a par da vida política do país, e tinha mesmo um certo orgulho em demonstrar que sabia os nomes de todos os ministros e de alguns secretários de estado.
Tive sempre a impressão de que, apesar dos seus esforços, a realidade lhe passava ao lado. O governo da casa era tarefa exclusiva da minha avó. Não porque ela fizesse questão ou, de algum modo, se impusesse, mas porque o meu avô se alheava de todas as responsabilidades e tarefas, preocupando-se apenas com o facto de não faltar água da fonte em casa. Mesmo depois, já muito mais velho, mal conseguindo mexer as pernas ou manter o corpo direito, não dispensava a ida diária à fonte da aldeia com a infusa de barro, a que nós chamávamos familiarmente enfusa.
Nunca nos perguntou se éramos felizes. Bastava-lhe saber que estávamos bem na escola e, mais tarde, saber se tínhamos emprego, quanto ganhávamos, se era o suficiente para pagarmos as prestações de uma casa. Creio que era funcional, num jeito muito próprio de toda a família. A pobreza em que cresceu e sempre viveu deu-lhe a ideia de que o bem-estar, a felicidade se medem pela comida na mesa e na despensa e pela lenha guardada para o Inverno. Talvez tenha sido esta pobreza, aliada à falta de contacto efectivo com a realidade que lhe conferia a sua surdez, que o obrigou a guardar tudo o que encontrava, desde pregos tortos e ferrugentos a meias-solas de sapatos, perdidas por alguém na rua, latas velhas, pedacinhos de madeira. Guardava todas estas coisas sem aparente préstimo na cavalariça, que de cavalariça já só tinha o nome. Era uma espécie de arrecadação, com entrada pelo alpendre, onde os meus bisavós tinham guardado uma mula, mas onde então se arrecadavam alguidares, batatas, melões pequeninos, fruto do árduo trabalho do meu avô no meloal a quilómetros de casa, roupas velhas, vasilhas de leite, de azeitonas, de azeite. Na manjedoura a minha avó guardava aventais velhos, xailes, lenços de cobrir a cabeça.
Era nesta cavalariça que nós, as crianças, ensaiávamos peças de teatro que adaptávamos ou que inventávamos, vestindo as roupas velhas e pobres que a minha avó guardava para rasgar e fazer panos no momento de caiar as paredes. Depois das peças ensaiadas, a maior parte das vezes apenas comigo e com as minhas duas primas mais novas, uma vez que a Maria Manuel era mais uma jovem mulher do que uma criança, íamos apresentá-las ao resto da família, que mal se dava ao trabalho de nos escutar ou de olhar para nós. Nada disto nos ofendia ou fragilizava, ainda assim. Fomos habituadas a não ter mais atenção por parte dos adultos do que aquela que era necessária para nos manter numa certa linha de conduta. Creio que foram essas as bases para nos tornarmos mulheres auto-suficientes, em termos emocionais.
A Fatinha e eu fomos sempre as mais namoradeiras, usando os termos dos nossos pais. Eu entregando logo todo o meu coração e chorando a cada desilusão, ela distribuindo sorrisos francos, sempre de coração ao alto e com a boa disposição que herdou da mãe, a minha tia Aldinha, irmã mais nova do meu pai, e do nosso avô. Zangávamo-nos na infância, trocávamos confidências na adolescência, éramos cúmplices nas brincadeiras em que sacrificávamos a mais nova, a Sónia e mantinhamo-nos respeitosamente pouco tontas na presença da Maria Manuel.
O jantar da noite de Natal era o que eram todas as refeições, uma completa desorganização. As mulheres afadigavam-se a cozinhar no alpendre galinha de cabidela com batatas ou ensopado de borrego, nós trazíamos a mesa maior para a cozinha, eu punha os talheres em cima do guardanapo dobrado em rectângulo, a Maria Manuel distribuía-os pelo lado esquerdo e direito do prato, a Fatinha e a Sónia dobravam o guardanapo em triângulo e, quando nos sentávamos à mesa, ninguém sabia que talher lhe pertencia. Faltavam sempre cadeiras no momento de nos sentarmos, tal era a desorganização. Mas nessa desorganização não faltava quem nos chamasse a atenção para a pouca comida que tínhamos no prato, obrigando-nos a comer mais. As conversas sobrepunham-se, o pão, as travessas, as garrafas de vinho cruzavam a mesa num movimento estonteante para quem viesse de fora. Mas toda a gente se entendia e nada faltava a quem quer que fosse.
Depois do jantar, as mulheres voltavam ao alpendre para lavarem a louça. Nós, as crianças e os homens, depois de parca colaboração, tomávamos o nosso lugar perto do lume, formando um semicírculo que se ia alargando à chegada dos restantes familiares. Recebíamos bonequinhos de chocolate e lançávamos as pratas para o lume, às escondidas da minha avó que receava que a chaminé ficasse suja demais.
Chegavam então a tia Anazinha, irmã da minha avó e o seu marido, o tio Chico Mouquinho, por ser desde cedo duro de ouvido. Estes tios-avós viveram muitos anos num monte um pouco afastado da aldeia, a Corte Condensa. O meu tio era aí guardador de cabras, creio que nunca fez outro trabalho em toda a sua vida. Antes de comprarem casa na aldeia, quando o meu tio ficou velho demais para poder continuar a trabalhar, visitávamo-los no monte. Esse monte, apesar de ficar perdido na planície, tinha alguma elevação no terreno, o que nos permitia a nós, crianças, dar largas à imaginação e subi-los para os podermos descer a correr, pelo meio das cabras, rebolando-nos nas pequenas flores silvestres, como víamos fazer a rapariguinha dos desenhos animados. Acredito agora que essa elevação no terreno era proporcional à nossa altura e à nossa vontade de sonhar, não sei, nunca mais lá voltei.
Nunca tiveram filhos. Chegámos a duvidar que tenham tido vida sexual, mas essa é uma ideia que tendemos a ter acerca dos nossos pais, tios e outros adultos quando somos pequenos, apesar de ainda hoje eu manter essa dúvida acerca destes tios-avós. Eram pessoas simples e sem qualquer tipo de instrução. A prolongada existência no monte dificultou qualquer tipo de adaptação ao que os tempos traziam de novo. O tio Chico Mouquinho tratava-nos por você, creio que por sermos meninas, ou simplesmente por não saber lidar com pessoas. Nos primeiros tempos de casados estes dois tratavam-se mutuamente por você, o que não veio abonar muito em favor da opinião que formámos dos dois enquanto casal.
Um dia, pouco depois de se terem construído as casas de banho nas casas da aldeia, o meu tio Chico Mouquinho entrou na da minha tia Aldinha para urinar. Saiu logo de seguida e sentou-se num silêncio constrangido ao lado do meu avô. O meu avô estranhou a rapidez e perguntou-lhe se tinha havido problema. O tio Chico Mouquinho respondeu-lhe que não tinha podido urinar porque a caixa estava fechada, referindo-se à tampa da sanita. Para nós esta era mais uma anedota a juntar a todas as que ouvíamos contar. Mas era mais do que isso. Era a limitação de quem nunca tinha tido o mínimo conforto na vida, de quem era um mestre a lidar com cabras mas que não sabia a primeira coisa sobre lidar com a vida quotidiana da aldeia.
A tia Anazinha era uma mulher pequenina, com pés de boneca, única sobrevivente de um parto de trigémeas. Era um pouco tímida, transmitia a ideia de que precisava de convite para se nos juntar na noite de Natal e recusava ficar para as refeições. Morreu ainda mais pequena na sua casa, alguns anos mais tarde, depois de já não nos reconhecer quando a visitávamos por ter ficado cega, sem nunca ter sabido que morria de cancro.
Mais tarde na noite, chegava ainda a outra irmã da minha avó, a mais nova de todas. Chegava com os três filhos e com a filha mais nova, mais nova ainda do que eu. Esta era a tia Alda, militante acérrima do Partido Comunista, fotografia certa no jornal se participava em manifestações políticas pela Reforma Agrária. Sempre associei esta minha tia ao poema do Manuel da Fonseca “Maria Campaniça”, mas nunca lho disse. Nunca lhe disse como admirava a sua convicção e a sua persistência numa terra onde às mulheres apenas cabia tratar da casa e dos filhos.
Esta minha tia não chegou a casar, escândalo certo numa aldeia pequena perdida no interior da planície. Namorava o homem que viria a ser o pai dos seus filhos e companheiro de toda a vida e uma noite, esgueirou-se pela janela, como conta a minha tia Maria que dormia nessa altura com ela, e foi simplesmente viver com ele. Viveram contra todas as conveniências até que morreu, no hospital, depois de também ela ter cegado.
Mas antes destas mortes juntávamo-nos todos à volta do lume. O semicírculo a alargar sempre um pouco mais, a minha avó a manter viva a chama na lareira e todos nós a mantermos viva a chama da alegria de estarmos juntos. Fazia-se café na lareira, os homens bebiam vinho tinto, algumas das mulheres bebiam licores e todos comíamos bolo de mel e filhós. Íamos dormir tarde, adiando a hora de nos separarmos, as minhas primas mais novas pedindo para ficar em casa da minha avó a dormir, pedido que, por vezes, era atendido, o que nos redobrava a felicidade.
Já deitados, a conversa durava até tarde, altura em que o cansaço nos vencia e adormecíamos, por fim, extenuados e satisfeitos.
Na manhã seguinte acordávamos com a azáfama das mulheres, já preparando o almoço porque havia mais familiares e vizinhos a visitar. A casa de banho foi construída na cavalariça, ao lado da manjedoura que mais tarde a minha avó mandou retirar, gerando um coro de protesto que não levou a nada; a minha avó sempre foi muito prática e nada dada a sentimentalismos baratos. Ou caros. Essa casa de banho tinha apenas uma sanita e um bidé de plástico. O resto da higiene era feito à vista de todos, no alpendre, numa bacia de alumínio que enchíamos com um jarro de plástico e que despejávamos depois na parte mais afastada do quintal, onde tinha sido a estrumeira, a antiga casa de banho, ao ar livre, atapetada com palha que se renovava quando era preciso fazê-lo. A água gelada em pleno Inverno não nos desencorajava. Tínhamos água quente, que as mulheres punham a aquecer numa lata na lareira que se acendia logo pela manhã, mas nem sempre a utilizávamos.
Era então dia de Natal, uma das duas ocasiões do ano em que estreávamos roupa, e queríamos vesti-la imediatamente. As mães nem sempre o permitiam, para que não a sujássemos ou estragássemos, adiando esse momento esperado para depois do almoço. Podíamos então sentar-nos à mesa da cozinha e tomar o pequeno-almoço. A minha avó tinha sempre bolos folhados, costas e popias, queijo fresco, linguiça. Por vezes comprava fiambre, pensando que nós, as meninas da cidade o preferiríamos. Nunca se convenceu que na aldeia éramos, mais do que nunca, filhas da terra.
Depois do pequeno-almoço os meus pais e eu partíamos para a visita de mais tios, desta vez maternos. A minha mãe tinha um irmão mais velho, o tio Zé Lourenço, que tinha uma tasca, uma venda. Era aí a primeira paragem, para o cumprimentar. A minha mãe tratava-o por você, hábito que lhe foi imposto pelos meus avós maternos, que morreram quando a minha mãe era ainda uma criança e de quem, por esse motivo, não tenho mais memória do que aquela que a minha mãe conseguiu guardar. Na venda, o meu tio vendia vinho a copo. A única coisa que tinha para me oferecer era uns pacotes de bolachas de baunilha que não tinham mais do que seis e que eu recebia como o melhor dos presentes. Este tio guardava no casão, uma espécie de actual garagem sem carros ou de celeiro pequeno, grão e erva-doce. O cheiro da erva-doce, à passagem por certas ruas da aldeia acompanhou-me para sempre, transportando-me para o canto mais precioso do meu imaginário, sempre que o reencontrava. Seguíamos então para sua casa, onde estavam a sua mulher, a tia Mariana Coelho, sempre tratada por tia Coelha, e a minha prima Bitó que, na realidade, se chamava Maria Antónia. Aí pouco nos demorávamos, tal era a depressão com que se ficava por ouvir a minha tia falar de doenças, próprias e alheias, não permitindo que a conversa se afastasse desse tema. Esta visita era, para mim, criança, uma obrigação, mais do que um prazer. A minha prima era já mulher e a casa, impecavelmente arrumada, mal nos permitia respirar.
Voltar à rua onde viviam os meus avós era renascer. Ia então com a Maria Manuel visitar a vizinha da minha avó, a vizinha Maria Pereira. Era uma mulher com um rabo enorme, voz potente e dona de um excelso bigode, que nos punha na mão uma moeda para comprarmos um chocolate ou um par de cuecas. O seu marido, o vizinho João Páscoa, era um homem alto, seco, que falava sem que o percebêssemos claramente por lhe faltarem dentes, e que me pedia para ler artigos de jornal para se certificar de que eu já sabia ler e porque nunca o tinha aprendido, ele próprio. Esta visita foi sempre obrigatória, a minha avó fazia questão disso, mas nunca a sentimos como tal. Era como uma tia mais velha que não se nos juntava na noite de Natal.
Na rua dos meus avós havia ainda mais dois tios-avós, do lado materno. Eram o tio Zé Lourenço, irmão da minha avó materna, e a tia Clotilde. Estes tios também nunca tiveram filhos. O tio Zé Lourenço explorava uma pequena parcela de terra, cedida pelo padrinho da sua mulher, a tia Clotilde. Eram padrinhos ricos, ele e a sua mulher, também D. Clotilde. Para se ser rico não era preciso muito, bastava não passarem fome, ter um quinhão de terra e não ter de trabalhar as terras de outrém. Claro que esta sorte de ter padrinhos ricos não era uma sorte gratuita, todos os favores se fazem pagar, como se vê, aliás, pela minha mãe a quem acolheram mas que faziam trabalhar para toda a gente da casa. Viveram apenas um pouco mais afastados da miséria dos restantes. Por essa razão puderam tomar a seu cargo a criação da minha mãe e de mais dois sobrinhos da tia Clotilde. O meu tio Zé Lourenço usava um bigode igual ao do Hitler, mas era alto, magro e de mãos e cara queimados pelo sol do campo. Tinha como única habilidade o jogo de sombras que fazia com as mãos, representando um coelho, um homem com chapéu, um cavalo. A tia Clotilde era uma mulher baixinha, gorda, de pele muito branca e cabelo castanho claro, nada parecida com as outras mulheres da aldeia. Estava sempre suada, com o fino cabelo a fugir-lhe de dentro do lenço com que cobria a cabeça. Os beijos dessa tia chegavam-me desagradáveis, de tão molhados, mas eu não reclamava, nem sequer o demonstrava, por respeito à minha mãe. Esta tinha sido a casa da minha mãe depois de os meus avós maternos terem morrido, e até que casou com o meu pai. Nesta aldeia, como em todo o país durante o Antigo Regime mas especialmente no interior, particularmente no Alentejo, região eternamente sacrificada e esquecida, sempre se sobreviveu com dificuldade, com recurso à imaginação ou ao alheamento. Em alguns casos, claro, viveu-se com tanta fartura que só podia ser uma provocação. Morria-se cedo e por qualquer causa. Morria-se de amor, de contrariedade. Ou morria-se, simplesmente, de miséria. Os meus avós maternos, que nunca conheci, morreram de miséria. Na certidão de óbito ficou registado que morreram de tuberculose, mas foi de miséria que morreram. Adoeceram, primeiro o meu avô, e doentes continuaram a trabalhar, a tentar não morrer de fome e de cansaço, a tentar que os seus seis filhos lhes sobrevivessem. Perderam essa batalha para a miséria. Morreram na cidade grande, numa cama impessoal, sozinhos. A minha mãe ficou sem pai aos catorze anos e sem mãe aos dezasseis. A sua juventude, se se pode chamar juventude a uma escolaridade precocemente interrompida para se perder de trabalho nos infinitos hectares de searas, acabou nesse momento. Impôs-se o luto, que numa aldeia perdida no Alentejo profundo se arrastou até quase se perder o brilho dos seus olhos. Foi obrigada, como se de um favor se tratasse, a deixar a casa onde ficaram a viver os seus irmãos com a tia Nena. A casa dos meus tios, para onde foi morar a minha mãe, ficava na mesma rua onde morava o meu pai, sem padrinhos nem sorte que o protegessem, ajudassem ou explorassem. A minha mãe pagou caro, em trabalho e falta de liberdade, o privilégio de ter conhecido, vinte anos antes do meu pai e das crianças da aldeia, o sabor de uma banana. Era um luxo este fruto numa terra em que o trigo sobrava mas o pão escasseava. A minha mãe continuou, então, a trabalhar no campo, durante o dia, sobrando-lhe as noites para a lida da casa, para lavar, engomar e remendar as grossas roupas do tio e dos sobrinhos da tia Clotilde. A minha mãe estava de luto, não havia lugar para bailes, as ansiadas matinées, nem para joviais e ligeiras conversas com as outras raparigas quando, à noite, depois dos cinco feijões a boiar num caldo que cheirava a borrego, ou nem isso, puxavam as cadeiras de verga para a porta e a rua se enchia de mulheres que apenas tinham como horizonte a sobrevivência. Espanto-me, ainda hoje, quando ouço as histórias que a minha mãe conta, a sua facilidade em rir, característica que não se perdeu ao longo dos anos, apenas ficou cansada quando eu lhe pesei mais do que tudo. Característica que eu herdei, dela e do meu pai, cada um com o seu distinto sentido de humor que, em comum, tinham uma cumplicidade e uma vivência que, acima de tudo, os manteve unidos.
Mas as visitas não se ficavam por aqui. Havia ainda a tia Nena, a que ficou com os irmãos da minha mãe, também irmã do meu avô materno, eternamente solteira. Esta foi, provavelmente, a pessoa mais bondosa que já conheci e é das pessoas mais presentes no meu imaginário. Morreu sozinha na sua casa quando eu era pequena demais para ter aprendido a conhecê-la, verdadeiramente. Vivia sozinha na casa que tinha pertencido aos meus avós maternos. Era uma casa com disposição similar à dos meus avós paternos, mas necessariamente mais sossegada. No quarto junto à cozinha, a minha tia Nena tinha uma arca. Era uma arca de madeira com a função de uma despensa. O que havia para guardar era em tão pouca quantidade que uma arca era um exagero, mas era do que se serviam aquelas pessoas, animais de hábitos e aceitação. Dentro da arca guardava-se o toucinho branco, salgado, com um imperceptível veio de carne magra, ou menos gorda. Guardava-se o pão que se cozia uma vez por semana e que aprendemos a preferir nos últimos dois dias da semana, já duro, quase seco. Guardava-se o queijo em meia cura, que se deixava curar o mais possível para que rendesse mais: uma lasquinha de queijo, com casca, que nada se podia desperdiçar, para uma fatia de pão, também não muito exagerada em tamanho. Guardava-se o café que se fazia todas as manhãs, mais ou menos forte, conforme a quantidade disponível e o dinheiro que havia para comprar mais. Guardava-se o resto do peixe frito, que só era resto porque se dividia um carapau ou uma sardinha em três para três bocas, azar de quem ficasse com a cabeça. O que sobrava, então, roubado à fome da véspera, comia-se no dia seguinte, com o café da manhã e estava-se pronto para mais um dia de ceifa ou monda ou de semear adubo, que era afinal espalhar adubo, e que era dos trabalhos mais duros daqueles campos, que era o trabalho a que recorria o meu avô paterno para conseguir levar menos miséria para casa. Guardava-se o feijão e o grão que eram um desafio para quem os comia. Quase se poderia oferecer um prémio a quem encontrasse mais do que cinco feijões ou grãos no prato, assim houvesse dinheiro para prémios. Na mercearia compravam-se ossos, não havia dinheiro para carne, que emprestavam algum sabor aos feijões e grãos contados. Se a miséria era maior, se o clima não ajudava e não havia trabalho, tornavam a cozer-se, algum sabor haviam ainda de deixar no caldo. Guardava-se o sal, pouco, que não havia carne para salgar e pouca comida havia para temperar. Finalmente o melhor, guardava-se a erva-doce, que mais tarde eu comprava em saquinhos nos hiper-mercados, com a vã ilusão de que conseguiria recuperar ínfimos instantes de serenidade, de felicidade, aquela felicidade de quem crê que um cheiro perdido e reencontrado na memória nos pode redimir com a vida toda. Essa mistura de cheiros alia-se à bondade desta mulher que nos contava histórias, abrindo livros antigos que já tinham encantado a minha mãe e as minhas tias, alia-se à felicidade que era ir à terra, ao cheiro do candeeiro a petróleo, dos limoeiros no quintal, das azeitonas caídas das velhas oliveiras e que pisávamos no chão, enquanto brincávamos. Este cheiro só o reencontrei, muitos anos mais tarde, numa feira gastronómica que visitei com os meus pais, mas ainda assim, apenas assemelhado, onde se reencontravam os sobreviventes dessa miséria absoluta, vitoriosos afinal.
Depois de mais um almoço desorganizado em casa dos meus avós, mas farto e sempre delicioso, havia mais uma visita obrigatória, desta vez à cidade. A irmã mais velha da minha mãe, a minha tia Almerinda, sempre foi a mais vaidosa das irmãs. Casou com um caixeiro, o que lhe conferia um certo status perante toda uma família de trabalhadores rurais, segundo cria. Eram vaidosos e algo arrogantes, estes tios. Tinham uma filha, a minha prima Anabela, pouco mais velha do que eu, que era mais menina de cidade do que eu. Nesta casa não se estava à vontade, apesar de nos fazerem crer que se podia estar. A minha tia tinha um jarrão de louça branco, enorme, na entrada da casa, que era a sua principal preocupação quando os visitávamos. Temi sempre que eu ou o meu pai o quebrássemos, ou, muito mais tarde, a minha filha, já que teríamos de carregar essa culpa toda a vida. O meu pai é um pouco distraído e, no meio da conversa, o meu tio David interrompia-o para lhe pedir que afastasse a cadeira da parede, para lhe chamar a atenção acerca de uma gota de vinho caída na toalha ou de um pingo de gordura caído na camisa. Este meu tio, sem o saber, contribuiu para que eu desenvolvesse uma certa atitude de paternalismo para com o meu pai, se isso é possível, fazendo com que eu o defendesse e sublinhasse que achava graça aos seus descuidos.
Eram tão irritantes na marcação de terreno do seu clã familiar de três pessoas que ninguém se sentia verdadeiramente bem na sua presença. Pouco se davam com os familiares, excepto nas poucas vezes em que trocávamos visitas, e não lhes conhecemos amigos que perdurassem. Eram mesquinhos, rancorosos e sobranceiros, sem que alguma vez o tenham admitido. Claro que a minha mãe, no seu modo muito próprio de desculpar os outros, ainda mais quando nos outros se incluía a sua própria irmã, não os via deste modo, nem gostava que eu ou o meu pai o fizéssemos. Aqui reinava a ordem. Nesta casa, imaculadamente limpa, não se corria nem se falava alto. Estes tios eram afáveis, a seu modo, apesar de tudo. Na mesa não faltava nada, se bem que enquanto comíamos fizessem questão de salientar a qualidade dos petiscos e de dizerem que só eles sabiam onde se podiam comprar esses bens assim de tão boa qualidade. Eu costumava passar alguns dias das férias de Verão com esta minha prima, de quem gostava muito, mas dessas visitas poderei falar mais tarde. Depois do almoço, seguíamos todos, ordeiramente, para o café. De cada vez que os visitávamos, os meus tios faziam questão de nos apresentar um café novo; nunca se habituaram a frequentar o mesmo, assim como nunca se habituaram ao convívio com ninguém. Para salientar o enorme amor que os unia, e que faziam questão de mostrar que acreditavam ser maior do que o de qualquer outra família, dividiam o pacote de açúcar pelos seus três cafés, sem que fosse preciso falarem disso, mas numa notória ostentação de cumplicidade. Em termos políticos o meu pai e o meu tio David discordavam, forçosamente. As mulheres pediam-lhes, por vezes, que evitassem o assunto, mas tanto um como outro as ignoravam; o meu pai por levar esse assunto bastante a sério, o meu tio por gostar de marcar a diferença. Mas este pode ser um juízo de valor injusto, admito.
Apesar de tudo, gosto destes meus tios, nesse modo familiar que temos de gostar das pessoas com quem crescemos, que nos habituámos a considerar como parte de nós, pelo frágil laço do sangue.
Lembro-me que uma vez, em casa dos meus tios, à mesa, depois do jantar, comíamos chocolate. O meu tio David, a certa altura, pôs o último na boca. A Anabela protestou, em jeito de criança, e o meu tio deitou-o, já mastigado, na palma da mão e quis dar-lho, sublinhando essa cumplicidade que nesse momento, para sua tristeza, lhe saiu gorada, já que a minha prima fez uma cara de nojo e o recusou. Esta é a imagem que guardo dele. A de um homem que votava um amor quase incestuoso à sua filha, inundando-a de carícias e beijos que contrastavam com a atitude de toda uma família contida e nada dada a manifestações físicas de carinho.
A árvore de Natal e o presépio eram decorados com todos os requintes. Passavam o Natal sozinhos, mas faziam tudo a preceito. Esperavam pela meia-noite para que a Anabela pudesse abrir os presentes, e só depois de deitavam. Mas isso eu nunca presenciei, porque regressava à aldeia, ao caos da casa dos meus avós que era, afinal, a minha casa. Aí esperavam-me as minhas outras primas, tão ansiosas quanto eu, esperava-nos o lume aceso, as conversas sobrepostas, a boa-vontade, a minha avó com o seu lenço preto na cabeça e o avental novo e lavado preso à cintura, o meu avô com o seu chapéu preto e a sua eterna boa disposição.
Não ficávamos muito tempo na terra, os adultos tinham de voltar a trabalhar. A Maria Manuel e eu arrumávamos as nossas coisas à última da hora, adiando a tristeza de partir. A despedida conseguia ser um caos ainda maior do que os dias precedentes, tentando arrumar no carro a bagagem que tínhamos levado connosco, os presentes que tínhamos recebido, os queijos frescos, os curados, as linguiças, o pão, enfim, o dobro do volume com que tínhamos chegado.
À partida toda a gente se atropelava à porta, cruzávamo-nos para os beijos e abraços da despedida, eu e as minhas primas mais novas segredávamos as últimas confidências, os últimos desejos de boa sorte, a minha avó distribuía beijos repenicados e recomendações, rezando, entre dentes para que fizéssemos boa viagem, a minha tia Aldinha ria, ria toda ela, boca, olhos, gestos.
Rir sempre foi apanágio desta família. O meu avô tinha um enorme sentido de humor, oportunas e inspiradas tiradas que o meu pai veio a herdar, se isto se herda. A minha tia Aldinha, numa atitude quase infantil, ria em qualquer circunstância, principalmente em velórios. Esta minha tia é dona de tantas histórias de risotas, de “frouxos”, como lhes chamamos, em velórios, que se poderia fazer um livro a partir dessa matéria. Não que nos tenha morrido muita gente na família, mas na aldeia, sempre que morre alguém, é hábito toda a gente dispensar um pouco do seu tempo, no caso das mulheres a noite inteira, para o velório, já que todos se conhecem.
Quando a nossa tia Alda, a militante, morreu, presenciei um desses “frouxos”. Durante a noite, porque o cansaço acaba por nos vencer, um cunhado da minha tia acabou por adormecer, na sala do velório, junto ao corpo. Apesar do sono leve, conseguiu chegar a sonhar, e no sonho começou a pontapear o ar, repetidas vezes. Só esta situação, numa situação dramática e pesada como a que vivíamos, bastou para que a minha tia Aldinha começasse a sentir a vontade de rir crescer dentro de si. A mulher do homem adormecido sentiu vontade de justificar o marido e explicou então que, como habitualmente, o homem sonhava que matava uma cobra. Deu então uma cotovelada ao marido para que ele acordasse e perguntou-lhe: “Então, mataste a cobra?”. Foi o bastante para que o riso explodisse a dois metros da minha tia morta, agravado pela culpa de nos rirmos em tal situação. A minha tia Aldinha então lá contou daquela mulher que, num outro velório, chorava o marido, lamentando o arroz-doce que havia feito pela manhã e que ele não tinha chegado a comer. E o riso continuou, como continuava sempre, a minha mãe e a minha tia Maria lembrando também histórias similares que poderei contar depois. Era sempre um descalabro quando começávamos a rir, bendita família.
A viagem de regresso a casa era como o regresso de qualquer festa, um regresso nostálgico, mas comprazido. Entre acenos e últimas despedidas começávamos a deixar para trás a aldeia, as casas caiadas de branco, as ruas irregularmente calcetadas, a lama, os cães adormecidos a meio da faixa de rodagem, os velhos, muito velhos, todos de chapéu preto na cabeça e cigarro pendurado no canto da boca, parados na esquina apelidada de “esquina dos maldizentes”, deixávamos para trás mulheres de lenço na cabeça que carregavam as compras para o almoço e infusas cheias de água. Por fim a estrada que nos levava à cidade, à distância, à nossa vida de todos os dias.

a minha avó

Fazias-me laços nos vestidos quando eu era pequena. Zangavas-te comigo quando eu deitava os papéis dos chocolates para a lareira. Tinhas bombocas para mim quando eu chegava a tua casa. Envergonhavas-te quando o avô te fazia uma carícia à nossa frente. Não eras mulher de afagos mas nunca faltou carinho nas tuas atitudes. Eras a alma da casa mesmo quando envelheceste e ficaste incapaz de comandar e organizar como sempre gostaste de fazer. Derretias-te como mel com os teus bisnetos, à medida que tos fomos dando. Gostavas de ter a casa cheia de gente e nunca te desorientaste com a confusão que era estarmos todos juntos em tua casa. Sentavas-te na tua cadeira baixinha de verga e mantinhas vivo o lume, armada de capacho e tenaz.
Passaste a vida vestida de luto por quem te ia morrendo e mostravas uma certa pena quandos nos vias, as tuas netas, vestidas de preto e adivinhavas que não vestiríamos luto por ti. Fazemos-te o gosto, avó, e vestiremos preto por ti, para que aí nessa estrela onde te sentas e nos olhas, possas sorrir, já que morreste a chorar e a pedir perdão aos teus santos por desejares morrer.
Tomaremos conta do avô como tomámos conta de ti, ele que nos seus 90 anos tanto tem chorado por teres morrido. Seria uma magnífica história de amor, disseram-me, ele ter-se abalado ao ponto de ir para o hospital no dia em que nos despedimos de ti, no cemitério. Mas não são precisas histórias, tu sabes o quanto foste amada pelos teus filhos, pelas tuas netas, e disseste-nos muita vez o quanto isso te fazia feliz.
Despedimo-nos de ti, deitada na tua urna, no teu aparente sono tranquilo e guardamos connosco, além de todas as outras memórias que nos deixaste, o teu ar sereno.
Descansa bem, avó, que aqui fica quem sempre muito te amará.

alma salvada 2

O reencontro. Os risos em lágrimas com a boa disposição do meu avô. Primas e tios. As miúdas que parecem nós, em pequenas. A casa. Vazia porque já não tem a minha avó. A mesa posta em desordem. A visita às gavetas onde reencontramos as cédulas de nascimento dos dois filhos dos meus avós que não sobreviveram à infância. Descobrirmos que tivémos uma trisavó Luciana. A chave de um caixão preso a uma fita roxa. A conversa à volta da mesa até tarde. Eu a dormir pela primeira vez na cama dos meus avós. O sono que não chegou. A visita ao cemitério. Eu sozinha, à chuva, a chorar pela minha avó. A sua fotografia de mulher tão bonita de olhos tristes. A excursão para irmos beber café. A visita à ti Cremilde que faz queijos frescos e vende laranjas e favas. A bagageira do carro atafulhada. O último olhar à seara. As rosas roubadas do quintal da minha avó, as suas rosas. O regresso.

alma salvada

dentro de portas











fora de portas


11 de abril de 2008

terra do gerúndio

Hoje é um dia especial porque é a véspera de eu revisitar o meu Alentejo. O meu, que é tão diferente do restante.
Amanhã pôr-me-ei a caminho do sul. Sei como será. À medida que o carro avança e a planície se define, vou ficando mais livre, mais distante do que me pesa. A comoção crescerá até à recta final, quando der lugar à ansiedade. Entrarei na aldeia de coração acelerado. Farei o caminho pela única avenida, contornarei a casa do povo e dirigir-me-ei à casa dos meus avós.
É uma casa caiada de branco, com porta de madeira pintada de castanho e barra rente ao chão. Reconhecerei o cheiro da casa, apesar de vazia. Não terei já a a minha avó encostada à ombreira da porta, à espera. O meu avô não estará sentado na sua cadeira baixinha, no alpendre, fumando os seus cigarros assassinos. As minhas primas não andarão a correr pela casa, de vestidos curtos, porque já todas crescemos e a vida mudou. Mas a casa é a mesma. E antes mesmo de fazer a ronda de reconhecimento pelos quartos e pela cavalariça, irei, como habitualmente, encher a alma com a seara que cresce nas traseiras da casa. Entrarei no trigo até aos joelhos, ou talvez um pouco mais. Procurarei as papoilas e os girassóis e por ali andarei até que me chamem "Anda cá que chegou a madrinha".
Visitarei a família. Andarei a pé pelas ruas tão familiares. Aspirarei todos os cheiros. Abrirei as gavetas da casa dos meus avós e encontrarei a sua presença em cada uma delas.
Irei de carro buscar o meu avô onde vive agora para que cuidem dele e trá-lo-ei para a sua casa. Abraçar-me-ei a ele quando chorar por já não ter a minha avó. Verei nas miudas, as bisnetas dos meus avós, a imagem de quem nós éramos.
Sentar-nos-emos todos à volta da grande mesa e ao lado do meu avô sentar-se-á uma de nós, para que não seja tão clara a ausência da minha avó. e sem darmos por isso, faremos o que mais dava prazer à minha avó de quem sinto tanto a falta, atropelar-nos-emos todos nas conversas, atravessaremos cestos de pão, travessas de comida e garrafas de vinho de uma ponta à outra da mesa, perderemos talheres, trocaremos copos e, por momentos, parecerá que a vida se recompôs.

breve bonança

Como antes de todas as tempestades, ligarem-me para partilharem comigo um momento bonito, uma música que se ouve do lado de lá da linha trazida a mim por quem sabe que gosto. Apesar das mágoas acumuladas em anos, apesar das duras palavras já trocadas, há sentimentos que subsistem, que sobrevivem. Como aconteceu agora, num telefonema que, a não ser pelas ditas tempestades, iria parar direitinho à lista de coisas boas.

(a propósito da tia Dulce do Rogério)

Há aquele casal, a Liete e o António. Todos os sobrinhos gostam deles, todos os cunhados, irmãos, a filha, os amigos. Bem dispostos, sorriso pronto, mesa posta, porta aberta. A vida foi-lhes dando que fazer, e muito, mas sempre se mantiveram à tona de água e sobreviveram a todos os embates.
Até que um dia, muito antes do tempo, envelheceram. Apanhados de surpresa na sua vida arrumadinha, casa da filha para visitar, neta bebé para mimar, este foi o embate-mor: o casamento da filha tinha acabado. Pior, por opção dela. Como explicar-lhes que o conforto não é tudo? Como explicar-lhes que há casacos que deixam de servir?
Ela tentou, a filha, mas a desilusão enchia-lhes as horas e nada ouviam. Choraram, recriminaram, suplicaram, por fim ostracizaram. A filha já não explicava nada, ia aparecendo apenas para que a bebé não perdesse o rasto dos avós. A Liete enchia os silêncios com conversas de compras e cozinhados. O António passou meses sem olhar nos olhos da filha e sem lhe sorrir. À mesa o seu olhar nunca se cruzava com o dela. Deixaram de comentar noticiários e livros lidos. Deixaram de se telefonar para partilharem momentos saborosos. Deixaram de ser cúmplices, ou se calhar, nunca o tinham sido.
A filha via-os velhos e tristes, achando que devia sentir-se culpada. Saía de lágrimas nos olhos, nó na garganta e no estômago. Os cunhados, sobrinhos, irmãos, amigos tentavam empurrá-los na vida mas já nem esses recebiam sorrisos. A filha ia definhando vendo a Liete e o António, tão velhos de repente, morrerem devagar.
O tempo foi passando, largos meses, alguns anos, e voltou alguma cordialidade. Mas a cumplicidade tinha-se perdido. No seu lugar a impaciência perante opiniões diferentes, no seu lugar a condenação, a culpabilização dos sorrisos da filha. No seu lugar uma bomba-relógio que a cada momento ameaçava explodir os destroços.
Como tatuagem.

10 de abril de 2008

Tenho aqui um colega que por acaso agora também é uma espécie de chefe que de há 15 anos para cá se vai tentando chegar a ver no que dá. Por cada avanço dele há uma resposta ou atitude minha que o pretendem afastar. Ele finge não perceber, eu às vezes finjo que ele está, afinal, a querer dizer outra coisa, e entre fingimentos temos co-existido quase pacificamente.
Hoje, cá voltou à carga, de forma, mais uma vez, inteligente, escudando-se no discurso do Alberto João para, a partir da sua "auto-masturbação" levar a conversa até ao orgasmo, salvo seja.
Como a temática era a política interna, as escutas telefónicas e os crimes racistas, tentei focalizar a minha atenção por aí. Mas o homem lá continuava a levar a conversa onde queria, sempre defendido, obviamente, em citações alheias.
Longe vão os tempos em que havia uma certa inocuidade nos pequenos gestos, quando me trazia albuns antigos dos Pink Floyd ou do José Mário Branco para ouvirmos à hora do almoço e em que podíamos ir almoçar só os dois, sem ele se estender ao comprido.