11 de abril de 2008

(a propósito da tia Dulce do Rogério)

Há aquele casal, a Liete e o António. Todos os sobrinhos gostam deles, todos os cunhados, irmãos, a filha, os amigos. Bem dispostos, sorriso pronto, mesa posta, porta aberta. A vida foi-lhes dando que fazer, e muito, mas sempre se mantiveram à tona de água e sobreviveram a todos os embates.
Até que um dia, muito antes do tempo, envelheceram. Apanhados de surpresa na sua vida arrumadinha, casa da filha para visitar, neta bebé para mimar, este foi o embate-mor: o casamento da filha tinha acabado. Pior, por opção dela. Como explicar-lhes que o conforto não é tudo? Como explicar-lhes que há casacos que deixam de servir?
Ela tentou, a filha, mas a desilusão enchia-lhes as horas e nada ouviam. Choraram, recriminaram, suplicaram, por fim ostracizaram. A filha já não explicava nada, ia aparecendo apenas para que a bebé não perdesse o rasto dos avós. A Liete enchia os silêncios com conversas de compras e cozinhados. O António passou meses sem olhar nos olhos da filha e sem lhe sorrir. À mesa o seu olhar nunca se cruzava com o dela. Deixaram de comentar noticiários e livros lidos. Deixaram de se telefonar para partilharem momentos saborosos. Deixaram de ser cúmplices, ou se calhar, nunca o tinham sido.
A filha via-os velhos e tristes, achando que devia sentir-se culpada. Saía de lágrimas nos olhos, nó na garganta e no estômago. Os cunhados, sobrinhos, irmãos, amigos tentavam empurrá-los na vida mas já nem esses recebiam sorrisos. A filha ia definhando vendo a Liete e o António, tão velhos de repente, morrerem devagar.
O tempo foi passando, largos meses, alguns anos, e voltou alguma cordialidade. Mas a cumplicidade tinha-se perdido. No seu lugar a impaciência perante opiniões diferentes, no seu lugar a condenação, a culpabilização dos sorrisos da filha. No seu lugar uma bomba-relógio que a cada momento ameaçava explodir os destroços.
Como tatuagem.

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