31 de março de 2008

a senhora que se segue

Ainda à volta destes mistérios da memória e das memórias, lembrei-me de um livro que li quando estava mesmo mesmo a deixar de ser criança, um livro que apareceu lá em casa, já não sei bem como, acho que ninguém o comprou, chamava-se Rebeca da Daphne du Maurier. Nesse verão fiz como era meu hábito, li o livro 3 vezes.
Para quem não conheça, é a história de um segundo casamento às voltas com o fantasma do primeiro. Tantos anos depois, tantas vivências depois, ainda acho que há homens que não chegam a divorciar-se, mesmo se já tiraram do dedo a aliança e se já assinaram papeis e vivem noutra casa, mesmo que festejem o seu novo estado civil, mesmo que digam que fecharam a porta. Há homens que não se divorciam das ex-mulheres e há homens que não se divorciam de terem estado casados. Não é complicado, eu é que me explico mal. Ou então é mesmo complicado.
São os homens que mantêm nas conversas de cama, nas férias, nos serões em frente à tv, nas compras de supermercado, nos episódios divertidos e nos carinhosos, a presença de quem deveria ter saído mas não sai por vontade própria nem lhe vê mostrada a porta de saída.
Também conheço mulheres divorciadas, mas nenhuma que se agarre ao casamento acabado.
Porquê?
Porque é que há homens que não largam? Que não se separam? Que acumulam presenças na cama?
Será possível seguir-se em frente sem desatar os nós que nos prendem ao passado? Ou deveremos antes perguntar se querem efectivamente seguir em frente?
Sou eu, como mulher, que complico ou as peças que eles carregam não cabem mesmo neste puzzle?

pequenas vitórias

Não me posso queixar, não tenho, em boa verdade, feito nada no sentido de conseguir grandes vitórias, na minha vida. Talvez por isso as pequenas me deixem tão momentaneamente feliz. Principalmente estas que nascem da aprendizagem, da pesquisa, do empenho, da determinação em não desistir enquanto não tiver conseguido o que pretendo saber fazer. Era uma coisa simples, um problema de solução informática, porém um desafio para uma leiga na matéria. Pesquisei, pensei, tentei, errei, tentei de novo e quando finalmente consegui, exultei. Mais uma vez, sozinha, tinha resolvido o meu problema, e com esta pequena vitória consegui deixar um registo de mim que passarei à minha filha, que poderá passar a quem quiser.

Sou agora imortal.

30 de março de 2008

temperança

28 de março de 2008

fantasmas

"Mas a felicidade é frágil,
e quando a não destroem os homens ou as circunstâncias,
ameaçam-na os fantasmas."
M. Yourcenar
Austin O'Malley disse: ""A memória é uma velha louca que deita comida fora e guarda trapos coloridos." Às vezes o que se guarda não é tão colorido assim, mas é definitivamente imprestável. Guardamos palavras duras e actos egoístas. Guardamos frases frias e atitudes desapegadas. Guardamos ressentimentos, passos falhados, ausências em momentos de sede.
Ainda que tentemos ir empurrando estes fantasmas para o fundo da gaveta, a verdade é que os guardamos. E então, de repente, como naquelas caixinhas em que salta um boneco na ponta de uma mola, a nossa tranquilidade é assaltada por temores passados, por inseguranças, por dúvidas.
Separar a razão da emoção só será possível depois, quando chegar a bonança, mas ainda assim, será uma análise subjectiva. Tanto uma como outra co-existem de tal modo que não se perdem de vista, uma sempre no caminho da outra, as duas sempre no nosso caminho, o nosso caminho sempre cheio de pedras.
Seria bom, por vezes, podermos acordar no alento da tábua rasa, no calor da ignorância, na cama do esquecimento.
Só de vez em quando.

27 de março de 2008

Da menina que eu era

Um dia cheguei ainda menina à procura de emprego. Mini-saia, cabelo comprido, olhos verdes, com a esperança no futuro estampada nas expressões, nas palavras, no comportamento. Tinha 21 anos e uma vida cheia de sonhos à minha frente. O sorriso nos lábios. Dizem que ainda hoje se mantém. A única diferença é que naquela época era sincero, não havia artificios. A sabedoria de saber sorrir mesmo quando a vontade é chorar, chegou mais tarde.
Fiquei. Preenchia os requisitos que a empresa tinha estabelecido para o emprego a que me candidatava. Era uma pita. Hoje, sei-o, quando os meus olhos, necessitados de óculos olham para trás. E parece tudo muito distante. Ali cresci como ser humano, como mulher. Ali casei, ali tive a minha filha, ali fiz os meus amigos. Os tais que se contam pelos dedos de uma mão. Ali aprendi a vida.
Os anos são algo curioso. Passam depressa, é certo, mas analisados racionalmente, estão preenchidos de tudo um pouco. De amor, de raiva, de saudade, de amizade. Num cocktail que nos embriaga. E nestes momentos sóbrios, tenho a certeza que não lhes dei devido valor. Fui deixando para trás pedaços que julguei que bastava deitar no lixo. Mas não, hoje lembro-me deles.
A menina dos 21 anos tem hoje 37. E nem se deu ao trabalho de escrever qualquer coisa em sua honra no dia dos seus anos, de erguer uma taça de champagne para os celebrar. Continua a entrar pela mesma porta que atravessou num dia frio de Janeiro. Já não usa mini-saia. Usa invariavelmente calças. Mantém-se o sorriso, mesmo assim. Mesmo que não seja verdadeiro. Mas a verdade há muito que lá vai. Aprendi a mentira e a verdade.
Aprendi a amizade. Aprendi que ela tem que ser cultivada e tratada como uma flor. Com muito carinho. Aprendi a morte. Aprendi que as pessoas que amamos um dia nos deixam. Aprendi o vazio que fica para o resto da vida e as lágrimas que choramos, passem os anos que passarem. Por isso os anos são algo curioso. Não saram tudo.
Hoje, 15 anos mais tarde, sinto-me triste. Por me ter acomodado, por ter perdido o respeito por pessoas que me foram importantes nesta longa caminhada. Por ter perdido o lugar que eu julgava ter no seu coração, por não ter nada para lhes dizer, nem para ouvir. Por não ter tido a inteligência de sair quando não era tarde de mais, e não havia mágoa. Seria apenas mais uma empregada a apresentar a sua carta de demissão. Simplesmente. Sem laços, sem nada a recordar ou a lamentar. De cabeça erguida e sorriso nos lábios, como entrei. Tudo, menos a mini-saia. Essa, jamais a voltei a usar.

"já não sou teu amigo"

Há uns anos atrás, quando eu e o nosso amigo morto tinhamos as nossas disputas, e tinhamos muitas, esta minha amiga ficava triste e sentia-se dividida, não porque tivesse que tomar partido, claro que não, mas porque se via ao lado de dois amigos que momentaneamente ficavam de costas voltadas.
Agora esse amigo não está connosco e eu lamento o tempo perdido. Assim como lamento as desavenças entre esta amiga e outro nosso amigo. É tempo perdido. São energias que se gastam a virar a cara para o lado. É a tristeza no final de cada dia. É o desgaste. São as palavras que nunca deveriam ser ditas.
Eles não se apercebem, perdidos, cada um nas suas razões, nas suas queixas. Não se lembram sequer das gargalhadas, das longas conversas à mesa, da confiança, da empatia.
E também não percebem que quanto mais tempo passar, mais difícil será voltar ao ponto em que confiavam um no outro.
Eu, no meio da tempestade, sinto-me impotente, e penso que o meu amigo morto, esse sim, saberia o que fazer e o que dizer para os reunir.

26 de março de 2008

o amor nos tempos de cólera

Fui ver o filme. Não gostei muito. Talvez porque o livro é tão bom. Talvez porque temos esta mania de comparar o que não é comparável, de misturar alhos com bugalhos, de esquecer que um livro não é um filme, e vice-versa.
Algures a meio do filme, a mesma sensação: Esse amor é outro. Esse amor de um romance ou de um poema; de um quadro ou de uma escultura; de uma canção ou de um filme.
Nessas expressões o amor sobrevive nas esperas, nas contrariedades, nos impedimentos, nas ausências, nas traições, nos silêncios. Mas quando voltamos para casa, enquanto procuramos lugar para o carro ou pomos roupa a lavar ou pagamos contas ou levamos os miudos à escola, perguntamo-nos: o amor é real? E se é, como o identificamos? Como o alimentamos? Como o seguramos? Como não lhe fugimos?
Na vida de todos os dias, a cólera é outra, uma cólera que nos arrefece, que nos distrai, que nos faz duvidar: o amor existe?

os pássaros quando morrem caem no céu

A questão foi levantada hoje no programa da manhã: que destino dar às alianças quando o casamento chega ao fim?
Houve soluções poéticas como deitá-la ao mar. Soluções práticas como vendê-la e ir jantar, ou até aquela mulher que diz que usa a aliança da ex-mulher do seu marido, que o tempo não está para gastos supérfluos.
Mas já agora, que se faz a tudo o resto? Rasgam-se as fotografias? Queima-se o vestido? Continuamos a chamar padrinhos aos padrinhos de um casamento que já não existe?
Que fazer de um passado que nunca o será, de facto? Esconder tudo numa caixa e empurrar para o fundo da prateleira? Deitar fora a memória do fracasso?

25 de março de 2008

mundo ao contrário

Bem, bora lá acordar. Então o que foi que se passou nestes dias?
Alunos portugueses em cenas típicas de filmes norte americanos. Muito, muito barulho à volta disso, com razão, digo eu, se não fôr para tudo ficar na mesma. (Que distância desde o tempo em que os professores até nos mandavam deitar foras as pastilhas elásticas.)
O dia da poesia e o Mário Nogueira a escolher o Futuro, do Ary dos Santos. O que eu gostei.
A primavera a chegar apenas no calendário e os casacos que nunca mais se podem arrumar.
As cerca de 100 mil famílias à beira do colapso por não conseguirem suportar a subida das taxas de juro e os economistas a dizerem que mesmo assim elas deviam subir ainda mais.
Ainda assim os supermercados atafulhados de gente com carrinhos carregados de petiscos para a páscoa.
Os inevitáveis mortos na estrada.
O Bush, ainda o Bush e a sua guerra no Iraque. A contagem de mortos. Os que não estão mortos mas já morreram.
Não sei se é impressão minha ou se estamos a viver num mundo com falta de manutenção.

parabéns Flor

A minha amiga Flor hoje faz anos. É um dia especial, como todos os dias em que estamos juntas.

Gostava de lhe dar hoje, como presente de aniversário, todas as coisas que merece. A presença física do nosso amigo morto para que lhe desse o beijo que tanta falta lhe faz. Um amor feliz. Um trabalho onde pudesse voltar a brilhar. Espaço para que acabasse de estudar. Serenidade nas noites e nos dias. E um dia cheio de sol.

Mas não faço milagres. Por isso, a esta amiga tão-tão especial, que nunca deixou de me dar um sorriso, de me dizer o que preciso de ouvir para continuar o caminho, de estar presente, de me acalmar com a sua voz terna, de me ver com os seus olhos verdes, eu não posso dar mais do que a minha incondicional amizade, o meu amor e um beijo de parabéns.

E de continuar a usar o anel que trocámos num dia muito especial e que simboliza o que somos na vida uma da outra.

insónia

Não sei o que é pior numa noite de insónia. Pode ser a ansiedade de sabermos que daí a umas horas vamos ter de nos levantar e enfrentar um dia de trabalho. Ou a impaciência para o sono de quem dorme a sono solto. Ou a atenção para cada ruído da noite. Ou a teia de pensamentos, dúvidas, receios e filmes que nos enreda a vigília.
Ou se é a manhã. O acordar e implicar com a pressão ou com a temperatura da água do banho. Ou não haver uma roupa certa para vestir. O trânsito. As pessoas bem dispostas. A chuvinha irritante. A névoa nos olhos ou o peso na cabeça. Ter fome e não conseguir comer.
Na rádio toda a gente está bem disposta, diz piadas, escolhe músicas enérgicas. No escritório toda a gente já trabalha e resolve coisas e faz telefonemas. Eu escondo-me no meu gabinete isolado, à espera que o tempo passe e os cafés façam efeito, à espera que o trabalho me desperte neste primeiro dia depois de 5 em casa, pelo menos esses felizes.

24 de março de 2008

Tenacious D

É certo que já está aí ao lado na barra lateral, mas é um must, merece lugar de destaque :)


23 de março de 2008

domingo de páscoa

É isto a páscoa. A mesa posta, a família junta. Gradualmente, à medida que as horas vão passando, as linguas mais soltas. As vozes que se sobrepõem. As conversas que se cruzam num emaranhado, passando por sobre a mesa, quando um fala com o da ponta oposta da mesa. As histórias recontadas. Adultos no baloiço do quintal. Os risos, tantos risos. Daqueles que a gente não controla, ainda que às vezes ninguém perceba do que nos rimos.
Não há culpas, ninguém ressuscita e ninguém se lembra de ninguém pregado numa cruz nem a ressuscitar.
Somos nós e estamos vivos. E juntos. É o que importa.

20 de março de 2008

a bagagem dos viajantes

A propósito de um desses mails indistintos que circulam pelas nossas caixas, ocorreu-me que deveríamos viver a nossa vida como se fôssemos de férias. Não na ansiedade e na azáfama, é de bagagem que falo.
Quando nos preparamos para partir de férias, tentamos levar apenas o que pensamos que nos vai fazer falta, fazemos triagem após triagem para não nos carregarmos com coisas inúteis, sem préstimo. Inevitavelmente acabaremos por levar algumas de que não chegaremos a precisar e esqueceremos outras que nos farão falta.
Com a bagagem que carregamos na nossa vida devia passar-se o mesmo. Devíamos saber deixar para trás o que já não tem préstimo, o que está ultrapassado, o que já desempenhou o seu papel. Devíamos saber guardar espaço para novos souvenirs, para novas memórias.
Mas não. Vivemos os dias de malas atafulhadas de inutilidades, cada vez mais cansados de carregarmos pesos mortos, sem largarmos lastro nenhum, como se temêssemos que esses pesos ainda nos venham a fazer falta. Não farão. Já fizeram o que tinham a fazer.
Por mim, na bagagem guardarei mais esta teoria.

19 de março de 2008

avestruz

O banco que reteve por engano as notas que entreguei para depósito e que me obriga a esperar dias pela devolução. A factura da tvcabo que me cobra indevidamente a assistência técnica e que me pede para esperar por uma resposta entre 1 a 72 horas. O carro que mais uma vez me deixou apeada e que também mais uma vez me vai desequilibrar o orçamento mensal. O patrão que me diz, como se o meu bolso fosse o dele: troca-o.
Mas finalmente chego a casa e penso que talvez possa, por umas horas não me preocupar, tudo se há-de resolver.
Mas não. Chega a hora do noticiário e volta a angústia e a ansiedade. No parlamento brincam de esgrimir palavras e o assunto já nem são as taxas moderadoras nem a elevadíssima taxa de iva, mas as amêndoas que um oferece ao outro. A guerra no Iraque que faz 5 anos e há-de fazer muitos mais sem que os culpados assumam essa culpa ou párem o que fazem. As taxas de juro que vão mais uma vez subir e a mensalidade a ficar incomportável.
Apetece-me esconder a cabeça na areia.

páre de estalar os dedos

Este barulhinho que se ouve de fundo, a cada 3 segundos, vem do banner lateral que nos lembra o tempo que passa entre cada criança que morre de fome. Deixar alguém morrer de fome é vergonhoso para quem leva uma vida normal; não sei como será para quem morre. É provavelmente, de entre todos os flagelos e injustiças, o que mais envergonha.

Todavia, há aquele fenómeno que deve ter um nome, tipo anti-clímax ou coisa do género, que se passa por vezes nos velórios, de uma pessoa começar a rir descontroladamente, que me aconteceu agora. Lembrei-me do sketch dos Gato Fedorento, acho que na série Lopes da Silva, em que o Zé Diogo diz: Páre de estalar os dedos!
Oh God, make me good, but not yet!

18 de março de 2008

mero adereço?

Para a reunião com o administrador, entram os dois engravatados mais vaidosos que por aqui se passeiam. Não nutro especial simpatia por nenhum deles, ainda que muitas vezes tenha de trabalhar com eles directamente, até mesmo em viagens de horas, fechados num carro, dio mio, o que isso me custa.
Não obstante, desempenho o meu papel de anfitriã, escudada no à-vontade do administrador que é, afinal, o único a quem tenho de prestar contas. Dispostos em cadeiras à volta da mesa hexagonal, saio de fininho e refugio-me no gabinete ao lado, o meu, a postos para os vários chamamentos que se adivinham.
Antes de fechar a porta atrás de mim, ouço ainda o princípio da conversa inicial, o quebra-gelo antes do trabalho propriamente dito. Falam de alianças no dedo. Da tendinite de um e da alergia do outro. Armam-se em valentes, brincando com o facto de não as poderem retirar do dedo, não vão as respectivas pôr-lhes as malas à porta. Para mim vou pensando que não seria por isso que o fariam, as histórias correm pelos corredores e bem sabemos de que liga são feitos estes dois engravatados.
E ocorre-me ainda pensar no que é isto de usar aliança. Uma aliança é uma marca exterior que diz aos outros que alguém é nosso dono ou é, como o nome indica, o símbolo do que nos une a outro? Uma aliança é aquilo que se tira e esconde no bolso ou pretende ser uma barreira que impeça aproximações indesejadas? Uma aliança é a mensagem de que já nos arrumámos na vida ou o aro que se dissimula entre outros anéis? Uma aliança é prova de amor ou reminder de que há um compromisso a respeitar? O que faz com que duas pessoas (ou será só uma?) decidam se a vão ou não usar? Em temos efectivos, que diferença faz este pedaço de metal no dedo?

páscoa sem culpas

Por falar em saudosismo... Quando eu era pequena é que era. A páscoa era roupa nova, de primavera, para estrear, uma ida à terra, juntar tios, primas e avós.
A minha mãe e a minha tia começavam umas semanas antes os preparativos. A compra da revista Neue Mode, a escolha dos modelos, a ida a Lisboa comprar os tecidos. Depois a minha mãe e a minha tia afadigavam-se a costurar, a minha prima e eu feitas manequins, de braços levantados, com medo dos alfinetes fugidios, iamos fazendo as provas da roupa nova.
Depois era a compra das amêndoas para levarmos para as outras primas, os preparativos de coração e de malas, e finalmente chegava o dia.
Levantávamo-nos de madrugada, a viagem ainda demorava umas boas horas e queríamos chegar cedo.
A páscoa não tinha ressurreições nem crucifixos, tinha risos, roupa nova, chocolates da minha avó, conversa posta em dia com as primas, mais risos. E tinha sol. Não tinha chuva e as cidades não eram cinzentas.
Quando eu era pequena é que era.

17 de março de 2008

lisnave


A propósito de uma conversa ontem à noite, e porque não sou capaz de homenagem melhor aos meus pais e seus camaradas de luta, resta-me um copy-paste.


Não sei se é o cheiro dos velhos estaleiros. Não sei se é o rio, ali mesmo à espreita. Não sei se é a imponência da grua. Não sei se é a recordação dos operários saindo aos magotes, calças de ganga, vozes altas, rostos cansados. Não sei se é a imagem dos panos pregados à vedação, exigindo direitos e salário. Ou se é a memória das lutas aí travadas, as concentrações, as chaimites, os sindicatos, as cargas da polícia, os homens e mulheres que daí partiram para a ponte 25 de Abril e outra vez a carga da polícia. Não sei se foram os anos em que os meus pais não traziam dinheiro para casa e o meu pai ia para o trabalho de bicicleta para eu ir de autocarro para a escola. Não sei se foram as noites que passei sem ver a minha mãe porque dobrava os turnos. Não sei se são as amizades que ali nasceram. Ou se eram os barcos. Não sei se eram as festas de natal onde cantávamos que natal “é o fruto que há no ventre da mulher”. Não sei se era o cheiro a tinta ou a cor dos fatos-macaco. Não sei se eram os papões-família-Mello. Não sei se eram as excursões para entregar pelo país os brinquedos para parques infantis que os operários faziam quando a administração recusava trabalho. Ou se era o casaco amarelo que abrigava a minha mãe nas manhãs agrestes de inverno. Não sei se é passar agora pela avenida e ver os autocarros passarem sem parar pelo que parece ser uma cidade fantasma. Não sei se era uma sensação de segurança, violenta e inesperadamente abalada. Não sei se é a juventude perdida dos meus pais. Ou a promessa de um sonho que afinal não o foi. Não sei se são os homens tristes. Ou as mulheres envelhecidas. Não sei se é a injustiça. Não sei se é o espectro do capitalismo. Não sei se é a história dos operários que aí morreram em acidentes de trabalho. Não sei se foi a preocupação de ouvir boas notícias do meu pai quando se sabia de mais um acidente. Não sei se são as histórias de amor e infidelidade. Não sei se é porque a comissão de trabalhadores dava aos filhos dos funcionários as prendas de natal que a administração não dava. Não sei se eram os óculos do meu pai sempre picados por soldadura. Ou as pernas da minha mãe queimadas pela água a ferver. Não sei o que é. Mas sei que me ofenderá ver ali nascer um qualquer empreendimento para que morram os homens e mulheres que ali começaram por ser jovens.

ai, saudade

Quem não se lembra do "Portugal no coração" cantada pelos Amigos, no Festival da Canção de 1977? Pois, se calhar muita gente. Não importa. Estive a ouvir agora essa. Quem se lembra há-de ter presente o Paulo de Carvalho a despedir-se da saudade mudando, nessa palavra, a toada da canção para fado.
Tanto o fado como a saudade, nos anos logo-logo a seguir ao 25 de Abril tinham esta conotação maldita com o senhor das botas.
Eu, se calhar, mas só se calhar, sou, afinal de contas, um bocadinho de nada reaccionária. Não é por mais nada, é apenas porque sou saudosista até chatear. Gosto do regresso a um certo passado, sei lá, se calhar como forma de ilusão de que houve coisas que valeram a pena, que não se perderam, que é como quem diz, uma forma de acreditar que a liberdade não está comprometida.

15 de março de 2008

ópera dos 3 vinténs

Quantos de nós se lembram da data em que a virgindade se foi? (Refiro-me ao momento exacto, não aos tentâmes...)

Eu, je, moi-même, lembro-me. Às vezes a gente pensa "esta data tem qualquer coisa, quem é que faz anos hoje?". Afinal é isto.

:)

14 de março de 2008

inusitadamente agradável

Eu sei que já não sou uma jovem de carne firme e pele lisa. Que pari uma filha e que tenho as mãos marcadas pelos detergentes. Que às vezes me arrasto mais do que ando. Que tenho celulite, barriguinha mole e cabelos com pontas estragadas. Que carrego sacos de supermercado em vez de sacos chiques com coisas fantásticas lá dentro. Tenho espelhos e não me iludo. Talvez por isso, classifiquei como inusitado este acontecimento de final de dia.
Eu explico.
À saída do escritório, atravessei a avenida e dirigi-me para a paragem de autocarro. Um carro de passagem apitou-me, como tantos, nem liguei, e continuei a tentar desenrolar o fio do meu mp3. O carro encostou e ligou os 4 piscas. Eu segui o meu caminho, só mais uns passos, até que, de dentro do carro, o homem me chamou: "Se faz favor." O homem era giro, giríssimo, mais novo do que eu, todo beto, mas um petisco. Abriu a boca e saíu a tanga: "Estou a chegar de Coimbra, não conheço aqui nada, onde é que se sai à noite?" Eu ri-me para ele, tinha sido um dia fantástico, eu estava bem disposta, apeteceu-me rir. Hesitei ainda na resposta, enquanto fazia contas de cabeça, que depende do que se gosta, que há imensos sítios onde ir. Ele insistiu e perrguntou-me se costumo sair à noite. E continuou.
Eu olhava para ele e entre risos divertidos pensava que ali estava uma coisa interessante de acontecer assim, do nada, a uma mulher. Como daquela vez em que um homem me pagou o café, sem me conhecer, mas esse não pediu nada em troca.
O homem acabou por seguir acompanhado com a minha recusa, no seu carro reluzente, ele próprio lindo-lindo e eu fiquei a simples fantasia que afinal ia buscar a filha à escola.
O meu ego, por momentos, ficou do tamanho do mundo. Eu e as minhas estrias tinhamos despertado, ao caminhar na rua, mesmo de costas, o interesse e o desejo de um homem, ao ponto de ele parar para no-lo dizer.
Logo mais, ao lavar a louça do jantar, hei-de voltar a sorrir, ao relembrar o episódio.
Quanto ao homem lindo-lindo, pode ser que volte a passar, à mesma hora, no mesmo sítio. Nunca se sabe.

amorizade

Aqui esta minha amiga e companheira desta e de muitas outras andanças é, em muitíssimas coisas diferente de mim. E melhor do que eu. Entre muitas outras coisas, nem sequer conheço quem tenha voz tão meiga como a dela, mesmo quando se zanga.
Muitas vezes me disse, mesmo quando todas as evidências pareciam apontar no sentido inverso, que acredita na felicidade e em histórias de príncipes e princesas. E brilham-lhe os olhos quando diz isto! Eu, que nem sequer acredito que o homem foi à lua, sorrio-lhe e abano a cabeça. Mas a mulher não se deixa demover. Nem eu quero que ela o faça, entenda-se.
Depois, o sorriso ainda se lhe abre mais quando me diz: Eu não te dizia?
E eu penso para comigo: É tão bom amar os amigos que temos.

hoje

Dizem que quando nos sentimos bonitas, nos acham bonitas.
Hoje acordei e não olhei para as nuvens. Está sol, um sol que já aquece. E hoje há coisas que me correm bem. Falaram-me do meu sorriso e dos meus olhos, e hoje eu acredito. E saí à rua e voltaram os piropos, porque hoje eu estou confiante. E ri com lágrimas, hoje. E falo ainda mais do que é hábito, hoje. De tão pouco preciso, afinal, para que as nuvens dêem tréguas.

www.divorcionahora.pt

É fácil, rápido e barato.
Poupa-se tempo, filas, burocracias e caras de alguns funcionários públicos mal dispostos. A situação em si já não é fácil, quanto mais sermos atendidos por pessoas (tal como nós), que nos tratam com a indiferença de quem trata números.
Chegou o divórcio na hora.
As condições resumem-se a não existirem bens em comúm, não haver filhos do casal e está feito. No máximo em 20 minutos, um casal que julgava viver o resto das suas vidinhas juntos, vão cada um para seu lado, e nem precisam de levar caneta, porque as assinaturas estão digitalizadas.
A minha avó, que lhe ia dando um ataque cardíaco quando na família pegou moda a união de facto, dispensando o vestido branco, o véu e a flor de laranjeira, deve estar a revirar-se no caixão com estas modernidades, pois que divórcio era palavra proíbida, mesmo que houvesse tareia lá em casa ou o amor tivesse fugido. O casamento era para sempre, até que a morte os separasse.
Se o amor já chega via internet, porque não o divórcio seguir os mesmo trilhos?
Acho muito bem.

acordo ortográfico

Agora é que eu estou tramada. Pelo menos por aqui vou deixar de ser conhecida pelo nome da outra, mas isso acaba por não ser grande consolo.
Não tenho a pretensão de ser perfeita, mas irritam-me os erros de ortografia. E é verdade, não me consigo calar face às calinadas. Mas, e agora? Uma vida inteira a ler e escrever as palavras de uma determinada forma e agora, eis que nos tiram o tapete de debaixo dos pés. Bem posso agora desatar a comprar dicionários e guias; escrever é uma coisa automática, uma pessoa não pode, a cada palavra, lamber o dedo e folhear o calhamaço. Diretor, ação, ótimo??? (sem querer, ainda pus um pê antes do tê). Isto soa tão abrasileirado que não há texto que brilhe.
O melhor que tenho a fazer agora é ficar muito caladinha perante um erro ortográfico, que isto nunca se sabe quando o feitiço se vai virar contra nós.

paleta (post por encomenda)

Essa teoria dos opostos se atrairem, bem, eu não sei bem a que opostos se refere a teoria, quando aplicada às pessoas, mas sou capaz de chegar perto da compreensão da coisa.
Já escrevi aqui sobre as cores que usamos e sobre o facto de nem sempre terem de ser conotadas com alguma coisa. Mas parece que não há muita volta a dar.
A metade da minha laranja (pronto, mais uma conotação) deu-me, há uns meses, uma pena vermelha e outra laranja, em forma de brincos. Fê-lo precisamente pela conotação de cada cor, politicamente falando, e pelo posicionamento de cada um de nós nessa paleta. Num dos meus raros assomos de romantismo, uni as duas penas num aro só, o que resultou na imagem anexa: duas cores improvavelmente lado a lado e, como com quase tudo, a gente habitua-se ao resultado.
Resta saber como ficará o quadro final quando ninguém que nos conhece, no seu perfeito juízo poderia conceber tal coisa.

Já não tenho tempo


Já não tenho tempo para me sentar a olhar o por do sol. Quando era adolescente sonhava caminhar de mão dada com o meu príncipe à beira mar, pontapeando a areia, planeando o futuro perfeito, porque tinhamos nascido um para o outro. Mas de facto o meu príncipe não nasceu. Só eu o sonhei.
Já não tenho tempo para ver o sol esconder-se atrás da serra, como fazia em miúda. E até conseguia ver nas sombras corpos deitados, em repouso. E pensava que havia de me sentar mais tarde, abraçada ao amor da minha vida. Mas o amor não me encontrou. Ou eu não me deixei encontrar.
Já não tenho tempo para chorar. As coisas deixaram de ter a mesma importância que tinham quando acreditava em contos de fadas.
Já não tenho tempo para ter tempo, para esperar. Os meus dias são uma louca correria, não vejo quem por mim passa ou quem para trás fica.
Já não tenho tempo para voar.







13 de março de 2008

da solidão

A irmã mais nova da minha avó paterna chamava-se Ana. Era pequenina, muito pequenina, sobrevivente de um parto de trigémeas, chamávamos-lhe Tia Anazinha. Foi casada toda a vida, bem, não toda, mas quase, com um homem a quem toda a gente sempre chamou Ti Chico Mouquinho. Trataram-se por você até ao dia da morte da minha tia, há uns 8 ou 9 anos. Não tiveram filhos.
O seu marido guardou cabras enquanto pôde trabalhar. Nunca fez outra coisa. Habituou-se a passar os dias sem a companhia de homens ou mulheres, entre cabras, no meio dos montes do baixo alentejo. Nunca nenhum dos dois soube ler.
Quando a minha tia adoeceu e depois cegou eram os sobrinhos quem cuidava dela, em casa, incapaz de se valer a si mesma. O meu tio, por afinidade, ria-se da sua cegueira, do descontrolo dos movimentos, da lucidez que lhe ia fugindo. Nunca aqueceu um prato de sopa à minha tia, nunca lhe puxou os cobertores para cima, nunca lhe perguntou onde doía.
Nós, as minhas primas e eu, éramos já mulheres, algumas já com filhas, e calávamos a revolta por respeito ao tio mais velho. As nossas mães lá iam mandando umas bocas, a ver se pegavam, mas nunca nada pegou naquela aridez.
Hoje o meu pai ligou-me a dizer que o Ti Chico Mouquinho tinha sido encontrado morto em casa. Liguei à minha prima e disse-lhe: Que tristeza deve ser uma pessoa morrer assim sozinha em casa. E ela disse-me aquilo que eu tinha pensado: Achas que merecia mais?
Eu não sei se ele merecia mais, nem me interessa. Mas a minha tia Anazinha, pequenina, tão pequenina, tão terna e humilde, tão indefesa, tinha, de certeza, merecido melhor.

estranhezas



Hoje vesti uma camisola horripilante. Não sei o que passa pela cabeças das pessoas, às vezes, para comprarem certas coisas. Devo ter achado que era gira, sei lá. E que de vez em quando, no inverno, podia vestir coisas que tivessem padrão. Acho que este ano ainda não a tinha vestido. E o ano passado, nem me lembro, tem estado a ocupar espaço no armário.

Mas a preguiça assume muitas formas, sendo que uma delas é a roupa a acumular-se à espera de ser passada a ferro. Até que chega um dia em que já não temos o "uniforme" a postos para vestir e resta-nos desenterrar cadáveres. Que é o caso desta camisola.

Deve ter sido um dia estranho, o dia em que a comprei.

dores de parto

F diz:
Não tenho inspiração nenhuma.
N diz:
És uma preguiçosa, não sei se já leste.
F diz:
Os textos que me saem dos dedos são todos virados para o meu estado de espírito.
N diz:
E então? Qual é o problema?
F diz:
Não sou preguiçosa, a sério.

N diz:
O blog é nosso, escrevemos o que quisermos, se o que nos preocupa é o umbigo, é sobre isso que escrevemos, e mái nada.
F diz:
Acho que não tenho pedalada para ti.

N diz:
Não digas isso!!! Eu só faço isto porque estou contigo, preciso de ti, sozinha não fazia nada, não faço nada.
F diz:
Quando leio o expresso dos pneus, às vezes acho q não fui eu que escrevi alguns textos.

N diz:
Eu sei, sinto o mesmo, os textos eram enormes, tinhamos tanto para dizer.
F diz:
O astral era tão mais alto.

N diz:
Sim, era, mas temos de o recuperar. Achas que para mim também está a ser fácil?
F diz:
Acho que não.
N diz:
Mas isto pode ajudar-nos. O difícil é começar, depois apanhas a onda e aí vamos nós, falando de ti ou de mim, não importa.
F diz:
E se vier um tsunami?
N diz:
Ficamos sem problemas, a carla diz que já passaram 200 e tal anos, deve estar a vir outro, porque é que não escreves sobre isso??
F diz:
Sobre o tsunami?

N diz:
Ou sobre a carla.
F diz:
Se viesse um tsunami e me levasse os problemas...
N diz:
Ou sobre isso.
F diz:
A carla dá um romance.

N diz:
Tudo dá um romance, se te pões a pensar que não escreves nada é que bloqueias mesmo.
F diz:
E depois ficava com outros problemas...
N diz:
Parva! Lidas com tanta gente, podes escrever tanto sobre a natureza humana.
F diz:
Que frase ;)


F diz:
Já arranjei um caderno, como tu.
N diz:
Já? Eu até gravo ideias no tm, quando estou a andar e não posso escrever.

N diz:
Podes escrever sobre as difícies relações entre chefe e subordinados; sobre esse teu chefe em particular; sobre clientes indecisos; e autoritários; sobre colegas mesquinhos; e sobre os bons; sobre preguiça; e empenho; sobre a falta de sol; o muito sono; a louça por lavar; as unhas que não se pintam; o caderno que arranjaste.
F diz:
Com uma capa à psd.
N diz:
À psd? Azul?
F diz:
Da cor antiga. Daquela com que o Nuno te brinda e que te fica lindamente.
N diz:
Olha lá, não temos que provar nada a ninguém, escrevemos o que queremos, como sabemos, ninguém tem nada a ver com isso.
F diz:
Mas acho que depois destôo de ti.

N diz:
És ão parva.
F diz:
"ão parva"?

N diz:
t, TÊ! xtúpida. Ai de ti que hoje até ao final do dia não tenhas um post. Não te faltam aqui ideias, pois não? Trazidas por ti, até. ESCREVE!
F diz:
'tá bem.
N diz:
Nem que te inspires nos posts antigos e faças nova abordagem.
F diz:
Atéééééé já.
N diz:
Boa escrita.

a preguiça morreu de sede...

Não sou muito paciente. Posso até ser hesitante, mas não sou paciente. Uma vez tomada uma decisão, seja ela qual for, envolva o que envolver, é para seguir, para cumprir.
Por isso, vou já tratar de lavar a roupa suja.
Tenho mantido uma série de blogs, tantos que lhes perdi a conta. Quando a minha amiga Flor me sugeriu que criássemos mais um a meias, 4 anos depois do primeiro, rejubilei, gosto de fazer coisas em parceria com ela, montes de coisas, e gostei de a ver com vontade, por isso apaguei os outros todos, ou quase, e decidi dedicar-me a este, com ela. Pico-a todos os dias: então esses textos, ó preguiçosa? Vai-me respondendo que não tem tido tempo e tal. E eu repito: É uma preguiçosa. Sim, Flor, eu sei que as nossas horas de almoço juntas já conheceram dias melhores, que não tenho propriamente sido um modelo de inspiração, mas custa muito pôr aqui meia dúzia de balelas? Só para que as duas mãos não sejam só as minhas?

contos exemplares

Esta é outra Mónica. Que não se chama Mónica.
Também não vai a ginásios, não tem com quem deixar a criança e não pode suportar mais essa despesa com o vencimento mensal. Também não sabe ao certo se teria muita paciência.
Não come comida japonesa nem tailandesa, joga pelo seguro e continua a apostar no cozido à portuguesa e na feijoada quando é domingo de almoçar em casa dos pais.
Não faz compras em lojas gourmet nem em mercados biológicos. Passa à pressa pelo pingo doce, à chegada a casa, e enche o cestinho com produtos de linha branca. Também não compra iogurtes magros nem vinagres balsâmicos, às vezes logo à segunda feira já está tão cansada que para si faz só, e chega, uma torradinha.
Não vai à cabeleireira nem à manicure, aproveita enquanto atende um cliente ao telefone para ir dando umas aparadelas nas pontas soltas e dar umas pinceladas com o verniz comprado nos chineses, nos dias em que não se dá ao luxo de pensar na mão de obra barata e explorada.
Não compra cds nem dvds, vai fazendo umas gravações à margem e deixando-os acumulados fora das caixas à espera de tempo para os passar para o mp3 ou para se sentar no sofá sem dormir.
Também não vai ao cinema, a não ser para levar a criança a ver filmes de animação.
Não afoga as mágoas em compras no shopping porque não pode vir a ter mais mágoas ainda.
Evita certos trajectos em certas horas de ponta porque já não sabe que mais há-de fazer ao carro para que não aqueça tanto o motor.
Coitada, chegamos nós, alguns, a pensar desta Mónica que não se chama assim, deve ser uma pobre infeliz. Curioso. É que não é nada assim.

12 de março de 2008

o amor é...


Não sei bem o que é o amor, hoje. Como outros (pre)conceitos, vê a sua essência, os seus passos, a sua própria legitimidade alterados em cada novo dia.
É compromisso ou nem por isso? Cedência ou fidelidade a princípios? Jura eterna ou amanhã logo se vê? Tolerância ou caderninho para apontar falhas? Um pedido de desculpa ou um finca-pé a justificar o que se fez? Um telefonema tardio ou uma sms apressada? Um ramo de flores ou não lembrar datas? Projectos para cada um ou feitos para os dois? Certezas, ainda que relativas, de que amanhã ainda será? Poemas e pôr-do-sol?
É mais ou menos como certos negócios, quem se meteu neles em bom tempo, é que se safou e hoje está bem.

descubra as diferenças

Entre aquilo que fomos e aquilo que somos há mais do que uma franja que cresceu, uns óculos que foram trocados por outros, uns quilos a mais ou a menos, os anos que passaram.
Entre aquilo que fomos e aquilo que somos há mais do que os sonhos que se desfizeram e os que surgiram, os amigos que perdemos e os que ganhámos, o que aprendemos e o que esquecemos.
Entre aquilo que fomos e aquilo que somos há mais do que os filhos que nasceram ou os avós que morreram, há mais do que o que lemos e o que rasgámos, há mais do que o trabalho que fizémos ou as tardes que passámos a dormir.
Entre aquilo que fomos e aquilo que somos há mais do que os cigarros que fumámos ou os copos que bebemos, há mais do que o lamento pelo tempo que perdemos em filas e o que não aproveitámos a ver o sol pôr-se por cima de uma seara.
Entre aquilo que fomos e aquilo que somos há mais do que os casamentos que fizémos ou os que desfizémos, há mais do que as viagens que sonhámos ou os quilómetros que engolimos sem saber para onde íamos.
Entre aquilo que fomos e aquilo que somos há a transformação de uma pessoa noutra, outra pessoa que mantém o mesmo nome mas que se chama de modo diferente, uma pessoa que nos calha por vezes não reconhecer, uma pessoa com quem temos de aprender a viver, que não podemos fugir de nós mesmos.
Depois daquilo que fomos e perante aquilo que somos resta-nos fazer com que a diferença entre aquilo que somos e aquilo que seremos nos traga serenidade.

11 de março de 2008

natureza morta

Quando eu era pequena o meu pai era a minha enciclopédia. Passava o tempo a aborrecê-lo com perguntas enquanto ele o que queria era ir ouvindo o noticiário. Mas eu não percebia e então perguntava. Quando lhe perguntei o que era ser presidente da república, o meu pai respondeu-me que era ser uma jarra de flores, que estava lá para ocupar um espaço e para parecer bem, mas que não fazia nada.
Ontem, ao ouvir o prós e contras, lembrei-me disso. Rei ou presidente, cada um defendia a sua própria jarra de flores, dispondo as ditas em cima de argumentos bem estudados. No sofá, suponho que cada um de nós tem uma opinião formada, e não são os argumentos de cada parte que nos farão mudá-la. Todavia, não podemos deixar de pensar, enquanto os ouvimos travar-se de razões que, lugar decorativo ou não, a força motriz é simples e invariavelmente a mesma: power (and not to the people)

10 de março de 2008

dia brasileiro da mulher

Há dias muito política e institucionalmente correctos, é verdade. Também é verdade que às vezes é preciso que assim seja. Outros rosários.
No Brasil não há cá cenas dessas, no Brasil, o dia da mulher é de obra feita. A mim, divertiu-me, que querem?

... nem bons casamentos


O Zapatero é o Zapatero, mas não é o Rajoy, não é?

eu passarinho

Do outro lado do oceano, há um amigo que fez seu trabalho ter a palavra certa para os meus dias menos felizes. De Mário Quintana, disse-me:


"Aqueles que aí estão
atravancando o meu caminho,
eles passarão
eu passarinho”.

já joguei ao boxe, já toquei bateria...

Já usei sapatos de verniz vermelho com saltos altos. Já ri quando quis chorar. Já fiquei quando quis ir. Já usei botas alentejanas com protectores de metal. Já risquei nomes da agenda e rasguei folhas de papel. Já usei saias que acabavam onde começavam as coxas. Já levantei o queixo porque me pesavam os ombros. Já parti com medo de ficar demais. Já usei calças tão apertadas que mal passavam pelos calcanhares. Já bebi para lá de saber bem. Já levantei o punho e já me calei. Já usei blusas bordadas. Já menti por fraqueza. Já fechei os olhos ao cair. Já fiz permanentes e pintei madeixas cor-de-rosa. Já fingi que me dava. E fingi que me vinha. Já pintei as unhas de vermelho. Já as roí. Já voltei onde não tinha sido feliz. Já cortei o cabelo rente. Já o pintei de preto. E de bordeaux. E com o sol já ficou quase louro. Já beijei por favor. Já fodi por rancor.
Em que volta da estrada se pode escolher outro caminho?

9 de março de 2008

a democracia é o pior de todos os sistemas...

... com excepção de todos os outros.

Não são muitas as coisas capazes de nos causarem, a um tempo, este misto de profunda tristeza e dolorosa revolta. Mas ontem, ouvindo o ministro dos assuntos parlamentares, foi isso que me aconteceu.

É preciso muito ressentimento para se ser tão mesquinho, ressabiado, injusto e despropositado.


e já agora, relembremos o "pai da democracia":

8 de março de 2008

m de mulher, mãe, maria, mártir, matriarca, meretriz, mutilada, menina-e-moça, motriz...

Há já muitos anos, tantos que lhes perdi a conta, que recebo, por esta altura, na caixa do correio, todos os anos, um postal com a reprodução de uma gravura, sempre diferente, e com um texto no verso, assinado pela Maria Emília de Souza, presidente da câmara da cidade onde nasci.
Durante muitos anos guardei-os todos, era giro ir acompanhando o seu esforço para não se repetir ao escrever todos os anos sobre o mesmo tema, o dia internacional da mulher.
Às tantas uma pessoa corre o risco de deixar de ser ouvida, os assuntos ficam como gastos, as palavras também. E um dia internacional que nem sequer é feriado arrisca-se a passar ao lado de muitas consciências. E as mulheres que tanto se queixam arriscam transformar-se em ruído de fundo, se não forem fazendo mais nada.
Todavia, ainda é preciso que algumas vão falando e fazendo. Enquanto continuarem a ser notícia os feitos de uma mulher, por ser mulher; enquanto houver uma só que seja injustiçada, violada, mutilada, condenada, discriminada pela sua condição, por muito que risinhos sarcásticos se multipliquem, este dia continua a fazer sentido.

7 de março de 2008

P.D.I.

Não me venham cá com histórias. Á medida que a idade avança, ela não perdoa, vai-se enrolando a nós como uma cobra e todo o nosso corpo vai cedendo.
Noutros tempos a sesta era para os velhos e agora sabe melhor que algumas sobremesas.

Costumam dizer que a idade é um estado de espírito, mas quando nos olhamos ao espelho, não é o espírito que vemos, mas sim os cabelos brancos (mesmo pintados, lá vão espreitando teimosamente as raízes), vemos as rugas na nossa cara, tipo selo num envelope, assim coladas com uma cola de boa qualidade (podem fazer-se plásticas, pois claro, mas isso é para quem tem guita e não tem medo de ficar como a Manuela Moura Guedes). Vemos as olheiras cada vez mais fundas, e mesmo com os melhores cremes do mercado para as disfarçar, de manhã, lá estão elas outra vez a denunciar o PDI.

Há sempre os ginásios para manter o corpinho, fazer exercícios e tal, mesmo que a gente transpire que nem cavalos enquanto ao nosso lado está uma miúda toda desempoeirada na casa dos 20 que faz o mesmo com uma perna às costas. Ah! E na televisão somos bombardeados por anúncios aos iogurtes para corpinhos danone, leite com cálcio, manteiga sem gordura, tudo ideal para manter a saúde à medida que a idade avança.

Depois é o colesterol, são os glóbulos brancos e os vermelhos, a hemoglobina, a qualidade da urina ou a falta dela, é a contenção nas gorduras, no alcóol, no sal, no açucar.

E quando os filhos nos dizem: "aquele tm é bué fixe", ou nos mandam uma msn: "axas k poxo ir nha festa?" e nós parecemos burros a olhar para palácios? Qual espírito qual caraças. A gente envelhece e ma nada. É o PDI, meus amigos. A puta da idade.

marcha da indignação

Aos poucos isto vai lá. Não é que a gente não dê por isso, que a gente dá. E até nos vamos indignando e manifestando, alguns. Mas nada parece travar o pendor censor do governo eleito com uma conveniente maioria absoluta. Ou então não se trata de censura, nem de intimidação, nem de simples apontar de dedo, pode ser só má vontade nossa e os senhores agentes da autoridade estarem apenas verdadeiramente preocupados com o trânsito(!!). Mas é que já no tempo da pide havia os referenciados e a gente até se lembra no que deu. Também me lembro de um professor que tive que ao ver uma estampa do Che num dos meus cadernos me disse "vais ter de te esforçar em dobro para me compensares da desilusão."
Isto tudo junto, não sei, dá que pensar ou é imaginação minha?

lança-chamas

As referências que fazem de nós aquilo que somos, foram-nos chegando à mão por diversos meios ("vemos, ouvimos e lemos"). Entre tantas que de grande parte nem tomamos consciência, há aquelas que não se descolam da etiqueta, aquelas que nos fazem pensar: "A primeira vez que ouvi isto estava na praia com a Ana." Ou: "Quando ouvi falar disto pela primeira vez, o João era o meu colega de carteira, na escola". Ou ainda: "A última vez que comi aqui a Graça chorou."
Estas etiquetas são sombras, umas aliviam-nos do sol escaldante, outras fazem-nos frio. São parte de nós, não há como fugir-lhes. Há é quem tenha a capacidade de sentir o que tem apenas pelo presente, descontextualizando o objecto da sua história, não trazendo às costas o arquivo morto que, por lei, já poderia ter sido lançado às chamas.

6 de março de 2008

Ingrid Bergman disse:

"Felicidade é boa saúde e má memória."


(a minha saúde bem podia ser melhor, se dela tratasse com outros cuidados; quanto à minha memória... acho que não há alfinetada que eu consiga esquecer)

setenta primaveras

Parabéns, pai.
Hoje que completas setenta primaveras não passaria sem te dar um beijo. Sem te deixar algumas palavras, aquelas que me são permitidas dizer-te. As outras, aquelas que não cabem no nosso espaço, que ficaram caladas ao longo dos anos, já não fazem sentido.

Queria entrar por aquela porta e saltar-te para os braços, abraçar-te e dizer-te parabéns, dizer-te que a vida nem sempre me tem tratado bem, que tenho caído várias vezes e que me tenho reerguido a custo, sem que tu o sonhes. Terás tu andado distraído ao longo dos anos ou terás pensado que por eu ter crescido, já não preciso de ti?
Não houve tempo para falarmos. As palavras ficaram presas na minha garganta, enquanto tu apenas me repreendias, sem leres nos meus olhos o desassossego, a dúvida, tantas vezes o medo.
E eu sonhava poder sentar-me no teu colo e contar-te os meus segredos, enquanto tu contavas os minutos que eu me atrasava.
Não houve espaço para crescermos de mão dada.
Hoje vou entrar por aquela porta , vou dar-te apenas um beijo e dizer-te: parabéns pai. O abraço fica adiado... Uma vez mais.

desafios

"Vamos mesmo fazer isto?" - não lhe vi os olhos mas adivinhei-lhe o brilho, porque isto de conhecermos bem uma pessoa, deixa-nos adivinhar as suas expressões só pela voz. E esse brilho dizia-me que precisava que as minhas mãos e as suas se envolvessem de novo num projecto a duas, como se fosse a primeira vez. Como se nunca tivéssemos feito nada semelhante no caminho que temos percorrido juntas, umas vezes, uma mais à frente, outras vezes, a outra mais atrás, mas procurando a mão uma da outra, para que o caminho pareça mais direito quando temos que escalar uma montanha.
E a sua mão puxou-me para mais um desafio, um projecto, um novo Blog a duas mãos.
E agora que estou aqui, de novo, sinto um formigueiro percorrer-me a espinha. Assim, um nervosismo adolescente semelhante ao que senti quando me envolvi de corpo e alma no Expresso dos Pneus.
Já cá estou. Para escrever contigo, como se tocássemos uma partitura. Assim, sentadas no mesmo banco, a tocar no mesmo piano.

uma casinha pequenina

A felicidade, nos dias que correm, e como eles correm!, toma formas tão simples que chegamos a duvidar que em tempos quisémos mais.
Começamos por querer a lua. Depois já não chega e andamos em círculos porque afinal o que queremos é o mundo.
"Um sonho morre sempre às mãos de outro sonho" e até nós, por vezes, morremos às nossas próprias mãos.
Adiante.
Sabe bem quando, depois de árduas batalhas para nos bastarmos a nós mesmos, temos quem, por instantes, queira tomar conta de nós. A princípio não deixamos, que sabemos o quanto nos custou chegar onde chegámos, mas depois, quando percebemos que é apenas por instantes, baixamos um pouco a guarda. E deixamos que tomem conta de nós. E nesse momento não estamos em guerra com ninguém. E podemos sorrir como em miúdos. E quando voltamos a nós, vemos que nada se partiu.
Quase parece que está tudo bem.

partido comunista português

Por mim, dou os parabéns a uma data de homens e mulheres. Os tais.

5 de março de 2008

publicidade enganosa

O partido tem esperança no nome. Não tem a palavra "partido", que parece que já não se usa. Esperança usa-se e cada vez mais, à medida que se esgotam outras opções.
O partido coloca-se ao centro, que é onde se deve colocar quem não se quer comprometer. E nos dias de hoje quem é que se quer comprometer?
O partido diz que é um movimento, o que nos poderia fazer crer que sim, que vai movimentar alguma coisa. Resta saber o que e quem vai movimentar, na dança de cadeiras que já todos sabemos de cor.
Seria tão mais interessante se tudo isto pudesse ser levado a sério.

o maior espectáculo do mundo

O circo está montado. Com tal eficiência que nós, deste lado do oceano acompanhamos a par e passo as andanças e desandanças dos candidatos norte-americanos com mais interesse do que aquele que dedicamos ao espectáculo dos vizinhos do lado, nuestros hermanos apenas de alcunha. Como se estes aqui do lado não tivessem nada a ver connosco.
(Por outro lado, se não fôssemos tão distraídos seríamos ainda mais deprimidos. Digo eu.)

a meio caminho

Uma vez um amigo sugeriu-me, e eu já escrevi sobre isto, que devíamos, em cada dia, escolher cinco palavras e escrever um texto coerente onde elas coubessem.
A primeira questão que se coloca é, desde logo, a escolha dessas palavras. Depois o texto, o sentido, a mensagem que se quer transmitir. Não é tarefa fácil.
Mas o pior de tudo é a disciplina. É na disciplina que a porca torce o rabo e que os meus projectos vão ficando mal começados, arrumados em gavetas. Se calhar sou um bocadinho santana-lopes, o que muito me custa, mas a verdade é que poucos têm sido os projectos que levei a termo. Por vezes ainda tento desculpar-me: ah, e tal, disperso-me, quero fazer muitas coisas, não tenho tempo para todas. Mas a verdade é outra: o medo de ter de admitir que não tenho capacidade efectiva para os levar a cabo.

Et c'est ça.

4 de março de 2008

doce de laranja amarga

Deixem-me só fazer uma referência ao nosso primeiro blog (ainda assim, adivinho que muitas se seguirão) para vos dar conta de uma coincidência. No meu primeiro post nesse outro blog falava sobre a cor da camisola que nesse dia trazia vestida. Não exactamente da cor, mas dos comentários de teor ideológico suscitados por ela, era cor-de-laranja. Ora eu nem acho nada que se tenha de ficar limitado nos adereços e nas cores só por causa da ideologia que nos faz sentido, tanto assim que já me chamaram "a versão fashion da revolução".
Hoje, pois então, também trago toques de cor-de-laranja. Uma vez mais, após estes anos e sem que me lembre de por aqui me terem voltado a fazer comentário semelhante, lá voltou a brincadeirinha e o bom dia que tive foi: Vens tão PSD hoje!

março, marçagão

1. Se não estou enganada, foi também em Março que começámos o nosso primeiro blog a duas mãos. Talvez mais para a frente no mês. Deve ser do sol primaveril, os passarinhos e tal. Temos é uns aninhos a mais. E outras coisas a menos. Mas se calhar, em vez de balanços, começávamos era por abrir um novo caderno, mesmo novo, a estrear, com as folhas todas muito no seu lugar, o cheiro do papel sem tinta.
2. Eu cá não tenho a presunção de ser escritora, por isso não me angustio com o papel em branco, e assim. Mas sempre se sente alguma responsabilidade. É que blogs há mais do que muitos, todos os assuntos já foram abordados de todas as formas, este é só mais um. Então, está decidido, não teremos a presunção de fazer deste nada de especial. Apenas o nosso caderno, que levamos debaixo do braço, que vamos folheando e rabiscando em cada espera. A duas mãos é melhor, uma segura a outra, como já avisámos. E estas duas seguram-se há tanto tempo que já nem dão por isso.
(blog da Natércia e da Florbela blog da Nat e da Flor blog da éne e da éfe blog nmca ffmdp
)