16 de abril de 2008

marco do correio - carta segunda

(carta de um lobo a uma fada - equação improvável)


Maio de 2002


Maio. A chuva ainda está cá. Teimosa sem dúvida. Quase invisível, quase ausente, quase despercebida. São os vidros que a traem fixando-a em pequenas gotas. Daqui onde escrevo, vejo-a polvilhada na minha janela, gotículas que lentamente engrossam e que, sem qualquer aviso, escorrem em ténues regatos sem rumo nem foz visível.
Gosto desta fragilidade que há em todas as coisas. Dá-nos o sentido da relatividade, da perspectiva.
Dizem que escolhemos o nosso próprio caminho. Já acreditei nisso, mas já não sei se é assim. Acho que nos põem caminhos à frente e apenas nos é dado escolher se os queremos percorrer ou se esperamos que nos mostrem outros. Será que temos o controlo sobre a nossa vida? E ainda que assim fosse, será que teríamos a coragem de a viver?
Tornámo-nos conservadores. Todos. Estamos agarrados a pequenas certezas, pequenas verdades, num mundo confortavelmente cheio de referências, de estabilidade e de suadas conquistas que prezamos acima de tudo. É isso no fundo o que queremos, o nosso pedaço de normalidade que nos torne reconhecidos e aceites na nossa grande colmeia. Até os lobos sabem disso! O que seria de nós se as ovelhas se organizassem e nos atacassem? Mas isso não seria próprio de ovelhas...
(…)Sabes, às vezes tento imaginar-te agarrando os fragmentos que me ofereceste: as palavras que escreves, a tua voz, um cigarro aceso preso entre dois dedos, uma estante de livros imaginários (quantos deles já terei lido?), um corpo que se descobre anichado num sofá(…). É engraçado este véu misterioso que nos cobre e só nos deixa tocar ao de leve no mundo um do outro.
O meu mundo - como o teu - tem uma solidão imensa que eu aprendi a amar. Devolve-me a consciência de mim próprio, numa quietude que não é perturbada pelo ruído dos outros. Já não tenho medo dela. Sei quando chega, os seus truques, quase que sei quando parte. Como escreveu um colega meu, o José Riço Direitinho, num conto belíssimo: “... mas estamos sempre sós... de resto somos assim... sós... e isso não tem remédio, nunca...”. Só temos de aceitar isso, não como uma fatalidade, mas como um sinal da nossa complexidade emocional.
Boa noite fada.

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