13 de abril de 2008

alma salvada 3

A viagem era sempre um acontecimento. Partíamos de manhã bem cedo, toda a gente estava pronta às seis da manhã. Não tínhamos muito dinheiro, pouca gente tinha, mas penso que não se era, em geral, tão cinzento quanto hoje.
A irmã do meu pai vivia numa casa paredes-meias connosco. Era a minha tia Maria, casada com o meu tio Manel e a minha prima-quase-irmã Maria Manuel, sendo que este nome não era necessariamente um resultado dos nomes do pai e da mãe, mas sim uma escolha peculiar da minha tia Maria. Esta minha tia era a minha segunda mãe, creio poder dizê-lo, mas posso explicá-lo mais tarde.
Partíamos, então, os seis, antes ainda do sol nascer, no velho e resistente Fiat dos meus pais, o meu pai e o meu tio sentados à frente, nós, as mulheres e crianças atrás. Eu sentava-me entre as pernas da Maria Manuel, cinco anos mais velha e alta do que eu. Eram pessoas simples, estes adultos, sem grandes ambições, mas de coração grande e aberto, generosos, amigos. A presença do meu tio Manel sempre dispensou auto-rádio. O meu tio tinha sempre histórias para contar, correm-lhe no sangue mil histórias contadas e recontadas, mas na ânsia de as contar ou de chegar ao fim para contar outra vez ainda, atropelava e suprimia metade das sílabas, de tal modo que nós nos ríamos por conhecer antecipadamente as histórias, não exactamente por as termos acabado de ouvir. Mais tarde dei ao meu tio um livro em branco para que ele registasse toda a sua empírica sabedoria, as histórias vividas, as que lhe foram contadas, as quadras populares que sabia de cor e que tinha para cada ocasião, os provérbios muito próprios, os jogos de raciocínio e perspicácia repetidos nos intermináveis serões, histórias, todas elas de alguma forma, de sobrevivência que ele, na sua eterna modéstia arrumou a um canto, algo constrangido, mas determinado a não escrever nele uma única palavra.
Eu e a minha prima Maria Manuel, as duas crianças, cantávamos. Cantávamos imenso, a partir de qualquer deixa, por qualquer motivo. Qualquer coisa nos lembrava, a um tempo, a mesma canção. À falta dela, em alguns momentos, chegávamos mesmo a inventar as nossas próprias canções, sem jeito nenhum, mas que contribuíram para criar uma amizade que resistiu a todas as distâncias, a todas as contrariedades, a todas as desatenções. Não sei como tinham paciência para nós nas quase quatro horas que demorava a viagem. Não havia auto-estradas como hoje, de qualquer modo evitávamos o curto troço que poderíamos utilizar, afinal o dinheiro era contado.
Mais ou menos a meio do caminho parávamos, abríamos o porta-bagagens e apareciam sanduíches com queijo ou linguiça, termos com leite achocolatado e café, abria-se um dos garrafões de vinho tinto para os homens, por vezes havia bolo de mel, cozido em tabuleiro, cortado aos cubos e polvilhado com açúcar grosso. Tudo nos sabia a paraíso, a própria viagem, ou o seu destino, se encarregava disso. Ir à terra era um acontecimento inigualável, onde cabiam o reencontro com as primas, os avós paternos, os únicos que sempre tive, que nos esperavam com o lume aceso na cozinha e o peito aberto e disponível, os cheiros da velha casa, os beijos obrigatórios a todas as velhas mulheres que encontrávamos nas ruas e que, curiosamente, eram todas, de certa forma, ainda nossas primas.
Quando retomávamos a viagem, com o pequeno-almoço entretanto tomado em pé, junto ao carro, a certeza de que tínhamos por percorrer apenas a última metade da viagem renovava-nos o ânimo e a vontade de cantar. A paisagem modificava-se, o sol brilhava agora com força, aquecendo-nos dentro do carro, começava a planície, as terras cultivadas, os montes quase dolorosamente caiados de branco, as pasmadas vacas com estranhos pássaros pousados nelas, cujos nomes e funções nos eram ensinados. E bastava falarem-nos do carraceiro, aquele pássaro que catava e comia as carraças que se acomodavam no dorso das vacas para se lembrarem, por exemplo, daquele vizinho que apesar de crescido não conseguia articular correctamente as palavras, e lá vinha a história desse rapaz que não tinha conseguido passar da primeira classe na escola, e que se referia a isso auto intitulando-se de "putente, sempre putente", numa alusão às vezes que tinha sido obrigado a repetir o ano, sem o ter conseguido concluir com sucesso. E não valia a pena lembrarmo-nos de outras histórias e pedirmos que no-las contassem. As histórias surgiam, como tudo na nossa família, num contexto muito próprio, nada acontecia a pedido, não teria feito sentido.
Nos últimos dez quilómetros da viagem já não tínhamos posição no carro desconfortável, com o aquecimento avariado por nunca ter sido usado. Pelo vidro aberto chegava-nos o cheiro a terra, a lume, àquilo que não sabíamos então ser a base, o sentido das nossas vidas.
A aldeia fica numa cova, não se vê senão quando lá chegamos. Diz-se que o seu nome -Salvada- se deve a ter escapado a uma invasão de forasteiros que por não a terem visto, não a atacaram. Foi salva pela sua localização. Esta história, apesar de um pouco mais complexa, foi-me contada assim, de modo simplificado pelo meu avô, numa das raras vezes em que contava mais do que perguntava. Pedíamos então ao meu pai que seguisse pela única avenida da aldeia, que era o caminho mais longo, quase num adiar do prazer certo que era chegarmos a casa dos meus avós.
O meu pai estacionava e nós, as crianças, saíamos do carro a correr para entrar em casa dos meus avós. Os meus avós, a minha tia Aldinha e as minhas primas já atropelando-se na soleira da porta com um prazer em tudo igual ao nosso. Mas antes de entrarmos ainda nos demorávamos a cumprimentar as vizinhas atraídas à rua pelo ruído do motor do carro.
A primeira coisa que a minha prima Maria Manuel fazia era ir espreitar o galinheiro. Entrava e ia ver se havia ovos frescos. Habituou-me ao mesmo ritual até que a minha avó ficou velha demais para cuidar das galinhas. Depois do quintal, voltávamos à casa e fazíamos a ronda pelos quartos, espreitávamos para ver se a cama onde dormiríamos já estava feita. Tinha sido a primeira cama dos meus pais, a única de madeira naquela casa, todas as outras eram muito mais antigas, de ferro, meticulosamente pintadas de branco, com o latão cuidadosamente areado pela minha avó, toda a casa impecavelmente caiada de branco, por dentro e por fora. A cama tinha um colchão que hoje é considerado do pior que pode haver, demasiadamente fofo, tão fofo que a primeira a deitar-se se afundava e era preciso que a outra viesse contrabalançar o equilíbrio.
A cozinha foi sempre a sala onde nos reunimos todos. A lareira e o espaço assim o exigiam. As cadeiras estiveram sempre dispostas em volta da cozinha, encostadas à parede, numa atitude de boas-vindas, de receptividade, de acolhimento. Sentávamo-nos todas, a minha mãe, a minha avó, as minhas tias e as minhas primas, toda a gente a falar por cima de toda a gente. O meu avô ia sentar-se no alpendre, a enrolar um cigarro. O meu pai e o meu tio Manel entravam de novo no carro e iam ter com o meu tio Chico, que trabalhava na Cooperativa Agrícola.
Abriam-se as malas, os sacos e começavam a sair as roupas que tinham pertencido primeiro à Maria Manuel, depois a mim e que eram agora entregues à minha prima Fatinha, na esperança de que ainda ficassem em condições de ser usadas pela minha prima Sónia, a mais nova das quatro, do lado paterno.
Não esperávamos pela noite de Natal para abrirmos os presentes, era logo à chegada que o fazíamos. Enquanto a minha mãe e a minha tia iam entregando o que tinham trazido às minhas primas mais novas, a minha avó levantava-se penosamente da cadeira, junto ao lume, dirigia-se ao quarto onde dormia desde sempre com o meu avô, ouviamo-la abrir a pesada gaveta da cómoda e reaparecia com uma nota igual para cada uma de nós. Eu nunca tive mesada, não tinha dinheiro para gerir. Quando precisava de alguma coisa pedia aos meus pais, e dentro das suas fracas capacidades lá faziam face, ou não, aos meus pedidos. O dinheiro que recebia da minha avó duas vezes por ano, no Natal e no meu aniversário, era por isso cuidadosamente guardado para comprar aquele ou aqueles livros a que não conseguia mesmo resistir. A escolha era criteriosa porque o dinheiro era pouco. Invariavelmente recebia das minhas tias lençóis, toalhas, panos de cozinha, todo o tipo de utilidades que julgavam, nos seus corações generosos mas muito pouco ambiciosos, indispensáveis para um enxoval decente. Claro que numa idade em que ainda mal se pensa em namoricos, todas essas coisas nos pareciam absolutamente absurdas e despropositadas.
Entretanto a conversa seguia com as notícias de quem tinha morrido, de quem tinha casado, de quem tinha ido de visita à terra, ou de quem se tinha reencontrado mais longe, perto das novas casas, aquelas que tinham já as suas próprias novas histórias. Era nessa altura que eu ia sentar-me junto do meu avô, cada um de nós escolhendo as cadeiras mais baixas, que nos deixavam sentados quase junto ao chão. O meu avô teve problemas de audição muito cedo, talvez por isso tenha desenvolvido um certo tipo de curiosidade descarada que o deixava à vontade para fazer perguntas, todo o tipo de perguntas e eu, que sempre gostei muito de conversar, sem precisar de recorrer à paciência, respondia-lhe a tudo, com pormenores. Falava-me então das suas preocupações com alguma de nós, com a que tinha sido obrigada a repetir o ano escolar, com a que não tinha vontade de estudar, expressava a sua opinião sobre o trabalho do meu pai, perguntava se continuavam as greves. Ouvia muito mal, mas encostava o ouvido à pequena telefonia do alpendre para se manter a par da vida política do país, e tinha mesmo um certo orgulho em demonstrar que sabia os nomes de todos os ministros e de alguns secretários de estado.
Tive sempre a impressão de que, apesar dos seus esforços, a realidade lhe passava ao lado. O governo da casa era tarefa exclusiva da minha avó. Não porque ela fizesse questão ou, de algum modo, se impusesse, mas porque o meu avô se alheava de todas as responsabilidades e tarefas, preocupando-se apenas com o facto de não faltar água da fonte em casa. Mesmo depois, já muito mais velho, mal conseguindo mexer as pernas ou manter o corpo direito, não dispensava a ida diária à fonte da aldeia com a infusa de barro, a que nós chamávamos familiarmente enfusa.
Nunca nos perguntou se éramos felizes. Bastava-lhe saber que estávamos bem na escola e, mais tarde, saber se tínhamos emprego, quanto ganhávamos, se era o suficiente para pagarmos as prestações de uma casa. Creio que era funcional, num jeito muito próprio de toda a família. A pobreza em que cresceu e sempre viveu deu-lhe a ideia de que o bem-estar, a felicidade se medem pela comida na mesa e na despensa e pela lenha guardada para o Inverno. Talvez tenha sido esta pobreza, aliada à falta de contacto efectivo com a realidade que lhe conferia a sua surdez, que o obrigou a guardar tudo o que encontrava, desde pregos tortos e ferrugentos a meias-solas de sapatos, perdidas por alguém na rua, latas velhas, pedacinhos de madeira. Guardava todas estas coisas sem aparente préstimo na cavalariça, que de cavalariça já só tinha o nome. Era uma espécie de arrecadação, com entrada pelo alpendre, onde os meus bisavós tinham guardado uma mula, mas onde então se arrecadavam alguidares, batatas, melões pequeninos, fruto do árduo trabalho do meu avô no meloal a quilómetros de casa, roupas velhas, vasilhas de leite, de azeitonas, de azeite. Na manjedoura a minha avó guardava aventais velhos, xailes, lenços de cobrir a cabeça.
Era nesta cavalariça que nós, as crianças, ensaiávamos peças de teatro que adaptávamos ou que inventávamos, vestindo as roupas velhas e pobres que a minha avó guardava para rasgar e fazer panos no momento de caiar as paredes. Depois das peças ensaiadas, a maior parte das vezes apenas comigo e com as minhas duas primas mais novas, uma vez que a Maria Manuel era mais uma jovem mulher do que uma criança, íamos apresentá-las ao resto da família, que mal se dava ao trabalho de nos escutar ou de olhar para nós. Nada disto nos ofendia ou fragilizava, ainda assim. Fomos habituadas a não ter mais atenção por parte dos adultos do que aquela que era necessária para nos manter numa certa linha de conduta. Creio que foram essas as bases para nos tornarmos mulheres auto-suficientes, em termos emocionais.
A Fatinha e eu fomos sempre as mais namoradeiras, usando os termos dos nossos pais. Eu entregando logo todo o meu coração e chorando a cada desilusão, ela distribuindo sorrisos francos, sempre de coração ao alto e com a boa disposição que herdou da mãe, a minha tia Aldinha, irmã mais nova do meu pai, e do nosso avô. Zangávamo-nos na infância, trocávamos confidências na adolescência, éramos cúmplices nas brincadeiras em que sacrificávamos a mais nova, a Sónia e mantinhamo-nos respeitosamente pouco tontas na presença da Maria Manuel.
O jantar da noite de Natal era o que eram todas as refeições, uma completa desorganização. As mulheres afadigavam-se a cozinhar no alpendre galinha de cabidela com batatas ou ensopado de borrego, nós trazíamos a mesa maior para a cozinha, eu punha os talheres em cima do guardanapo dobrado em rectângulo, a Maria Manuel distribuía-os pelo lado esquerdo e direito do prato, a Fatinha e a Sónia dobravam o guardanapo em triângulo e, quando nos sentávamos à mesa, ninguém sabia que talher lhe pertencia. Faltavam sempre cadeiras no momento de nos sentarmos, tal era a desorganização. Mas nessa desorganização não faltava quem nos chamasse a atenção para a pouca comida que tínhamos no prato, obrigando-nos a comer mais. As conversas sobrepunham-se, o pão, as travessas, as garrafas de vinho cruzavam a mesa num movimento estonteante para quem viesse de fora. Mas toda a gente se entendia e nada faltava a quem quer que fosse.
Depois do jantar, as mulheres voltavam ao alpendre para lavarem a louça. Nós, as crianças e os homens, depois de parca colaboração, tomávamos o nosso lugar perto do lume, formando um semicírculo que se ia alargando à chegada dos restantes familiares. Recebíamos bonequinhos de chocolate e lançávamos as pratas para o lume, às escondidas da minha avó que receava que a chaminé ficasse suja demais.
Chegavam então a tia Anazinha, irmã da minha avó e o seu marido, o tio Chico Mouquinho, por ser desde cedo duro de ouvido. Estes tios-avós viveram muitos anos num monte um pouco afastado da aldeia, a Corte Condensa. O meu tio era aí guardador de cabras, creio que nunca fez outro trabalho em toda a sua vida. Antes de comprarem casa na aldeia, quando o meu tio ficou velho demais para poder continuar a trabalhar, visitávamo-los no monte. Esse monte, apesar de ficar perdido na planície, tinha alguma elevação no terreno, o que nos permitia a nós, crianças, dar largas à imaginação e subi-los para os podermos descer a correr, pelo meio das cabras, rebolando-nos nas pequenas flores silvestres, como víamos fazer a rapariguinha dos desenhos animados. Acredito agora que essa elevação no terreno era proporcional à nossa altura e à nossa vontade de sonhar, não sei, nunca mais lá voltei.
Nunca tiveram filhos. Chegámos a duvidar que tenham tido vida sexual, mas essa é uma ideia que tendemos a ter acerca dos nossos pais, tios e outros adultos quando somos pequenos, apesar de ainda hoje eu manter essa dúvida acerca destes tios-avós. Eram pessoas simples e sem qualquer tipo de instrução. A prolongada existência no monte dificultou qualquer tipo de adaptação ao que os tempos traziam de novo. O tio Chico Mouquinho tratava-nos por você, creio que por sermos meninas, ou simplesmente por não saber lidar com pessoas. Nos primeiros tempos de casados estes dois tratavam-se mutuamente por você, o que não veio abonar muito em favor da opinião que formámos dos dois enquanto casal.
Um dia, pouco depois de se terem construído as casas de banho nas casas da aldeia, o meu tio Chico Mouquinho entrou na da minha tia Aldinha para urinar. Saiu logo de seguida e sentou-se num silêncio constrangido ao lado do meu avô. O meu avô estranhou a rapidez e perguntou-lhe se tinha havido problema. O tio Chico Mouquinho respondeu-lhe que não tinha podido urinar porque a caixa estava fechada, referindo-se à tampa da sanita. Para nós esta era mais uma anedota a juntar a todas as que ouvíamos contar. Mas era mais do que isso. Era a limitação de quem nunca tinha tido o mínimo conforto na vida, de quem era um mestre a lidar com cabras mas que não sabia a primeira coisa sobre lidar com a vida quotidiana da aldeia.
A tia Anazinha era uma mulher pequenina, com pés de boneca, única sobrevivente de um parto de trigémeas. Era um pouco tímida, transmitia a ideia de que precisava de convite para se nos juntar na noite de Natal e recusava ficar para as refeições. Morreu ainda mais pequena na sua casa, alguns anos mais tarde, depois de já não nos reconhecer quando a visitávamos por ter ficado cega, sem nunca ter sabido que morria de cancro.
Mais tarde na noite, chegava ainda a outra irmã da minha avó, a mais nova de todas. Chegava com os três filhos e com a filha mais nova, mais nova ainda do que eu. Esta era a tia Alda, militante acérrima do Partido Comunista, fotografia certa no jornal se participava em manifestações políticas pela Reforma Agrária. Sempre associei esta minha tia ao poema do Manuel da Fonseca “Maria Campaniça”, mas nunca lho disse. Nunca lhe disse como admirava a sua convicção e a sua persistência numa terra onde às mulheres apenas cabia tratar da casa e dos filhos.
Esta minha tia não chegou a casar, escândalo certo numa aldeia pequena perdida no interior da planície. Namorava o homem que viria a ser o pai dos seus filhos e companheiro de toda a vida e uma noite, esgueirou-se pela janela, como conta a minha tia Maria que dormia nessa altura com ela, e foi simplesmente viver com ele. Viveram contra todas as conveniências até que morreu, no hospital, depois de também ela ter cegado.
Mas antes destas mortes juntávamo-nos todos à volta do lume. O semicírculo a alargar sempre um pouco mais, a minha avó a manter viva a chama na lareira e todos nós a mantermos viva a chama da alegria de estarmos juntos. Fazia-se café na lareira, os homens bebiam vinho tinto, algumas das mulheres bebiam licores e todos comíamos bolo de mel e filhós. Íamos dormir tarde, adiando a hora de nos separarmos, as minhas primas mais novas pedindo para ficar em casa da minha avó a dormir, pedido que, por vezes, era atendido, o que nos redobrava a felicidade.
Já deitados, a conversa durava até tarde, altura em que o cansaço nos vencia e adormecíamos, por fim, extenuados e satisfeitos.
Na manhã seguinte acordávamos com a azáfama das mulheres, já preparando o almoço porque havia mais familiares e vizinhos a visitar. A casa de banho foi construída na cavalariça, ao lado da manjedoura que mais tarde a minha avó mandou retirar, gerando um coro de protesto que não levou a nada; a minha avó sempre foi muito prática e nada dada a sentimentalismos baratos. Ou caros. Essa casa de banho tinha apenas uma sanita e um bidé de plástico. O resto da higiene era feito à vista de todos, no alpendre, numa bacia de alumínio que enchíamos com um jarro de plástico e que despejávamos depois na parte mais afastada do quintal, onde tinha sido a estrumeira, a antiga casa de banho, ao ar livre, atapetada com palha que se renovava quando era preciso fazê-lo. A água gelada em pleno Inverno não nos desencorajava. Tínhamos água quente, que as mulheres punham a aquecer numa lata na lareira que se acendia logo pela manhã, mas nem sempre a utilizávamos.
Era então dia de Natal, uma das duas ocasiões do ano em que estreávamos roupa, e queríamos vesti-la imediatamente. As mães nem sempre o permitiam, para que não a sujássemos ou estragássemos, adiando esse momento esperado para depois do almoço. Podíamos então sentar-nos à mesa da cozinha e tomar o pequeno-almoço. A minha avó tinha sempre bolos folhados, costas e popias, queijo fresco, linguiça. Por vezes comprava fiambre, pensando que nós, as meninas da cidade o preferiríamos. Nunca se convenceu que na aldeia éramos, mais do que nunca, filhas da terra.
Depois do pequeno-almoço os meus pais e eu partíamos para a visita de mais tios, desta vez maternos. A minha mãe tinha um irmão mais velho, o tio Zé Lourenço, que tinha uma tasca, uma venda. Era aí a primeira paragem, para o cumprimentar. A minha mãe tratava-o por você, hábito que lhe foi imposto pelos meus avós maternos, que morreram quando a minha mãe era ainda uma criança e de quem, por esse motivo, não tenho mais memória do que aquela que a minha mãe conseguiu guardar. Na venda, o meu tio vendia vinho a copo. A única coisa que tinha para me oferecer era uns pacotes de bolachas de baunilha que não tinham mais do que seis e que eu recebia como o melhor dos presentes. Este tio guardava no casão, uma espécie de actual garagem sem carros ou de celeiro pequeno, grão e erva-doce. O cheiro da erva-doce, à passagem por certas ruas da aldeia acompanhou-me para sempre, transportando-me para o canto mais precioso do meu imaginário, sempre que o reencontrava. Seguíamos então para sua casa, onde estavam a sua mulher, a tia Mariana Coelho, sempre tratada por tia Coelha, e a minha prima Bitó que, na realidade, se chamava Maria Antónia. Aí pouco nos demorávamos, tal era a depressão com que se ficava por ouvir a minha tia falar de doenças, próprias e alheias, não permitindo que a conversa se afastasse desse tema. Esta visita era, para mim, criança, uma obrigação, mais do que um prazer. A minha prima era já mulher e a casa, impecavelmente arrumada, mal nos permitia respirar.
Voltar à rua onde viviam os meus avós era renascer. Ia então com a Maria Manuel visitar a vizinha da minha avó, a vizinha Maria Pereira. Era uma mulher com um rabo enorme, voz potente e dona de um excelso bigode, que nos punha na mão uma moeda para comprarmos um chocolate ou um par de cuecas. O seu marido, o vizinho João Páscoa, era um homem alto, seco, que falava sem que o percebêssemos claramente por lhe faltarem dentes, e que me pedia para ler artigos de jornal para se certificar de que eu já sabia ler e porque nunca o tinha aprendido, ele próprio. Esta visita foi sempre obrigatória, a minha avó fazia questão disso, mas nunca a sentimos como tal. Era como uma tia mais velha que não se nos juntava na noite de Natal.
Na rua dos meus avós havia ainda mais dois tios-avós, do lado materno. Eram o tio Zé Lourenço, irmão da minha avó materna, e a tia Clotilde. Estes tios também nunca tiveram filhos. O tio Zé Lourenço explorava uma pequena parcela de terra, cedida pelo padrinho da sua mulher, a tia Clotilde. Eram padrinhos ricos, ele e a sua mulher, também D. Clotilde. Para se ser rico não era preciso muito, bastava não passarem fome, ter um quinhão de terra e não ter de trabalhar as terras de outrém. Claro que esta sorte de ter padrinhos ricos não era uma sorte gratuita, todos os favores se fazem pagar, como se vê, aliás, pela minha mãe a quem acolheram mas que faziam trabalhar para toda a gente da casa. Viveram apenas um pouco mais afastados da miséria dos restantes. Por essa razão puderam tomar a seu cargo a criação da minha mãe e de mais dois sobrinhos da tia Clotilde. O meu tio Zé Lourenço usava um bigode igual ao do Hitler, mas era alto, magro e de mãos e cara queimados pelo sol do campo. Tinha como única habilidade o jogo de sombras que fazia com as mãos, representando um coelho, um homem com chapéu, um cavalo. A tia Clotilde era uma mulher baixinha, gorda, de pele muito branca e cabelo castanho claro, nada parecida com as outras mulheres da aldeia. Estava sempre suada, com o fino cabelo a fugir-lhe de dentro do lenço com que cobria a cabeça. Os beijos dessa tia chegavam-me desagradáveis, de tão molhados, mas eu não reclamava, nem sequer o demonstrava, por respeito à minha mãe. Esta tinha sido a casa da minha mãe depois de os meus avós maternos terem morrido, e até que casou com o meu pai. Nesta aldeia, como em todo o país durante o Antigo Regime mas especialmente no interior, particularmente no Alentejo, região eternamente sacrificada e esquecida, sempre se sobreviveu com dificuldade, com recurso à imaginação ou ao alheamento. Em alguns casos, claro, viveu-se com tanta fartura que só podia ser uma provocação. Morria-se cedo e por qualquer causa. Morria-se de amor, de contrariedade. Ou morria-se, simplesmente, de miséria. Os meus avós maternos, que nunca conheci, morreram de miséria. Na certidão de óbito ficou registado que morreram de tuberculose, mas foi de miséria que morreram. Adoeceram, primeiro o meu avô, e doentes continuaram a trabalhar, a tentar não morrer de fome e de cansaço, a tentar que os seus seis filhos lhes sobrevivessem. Perderam essa batalha para a miséria. Morreram na cidade grande, numa cama impessoal, sozinhos. A minha mãe ficou sem pai aos catorze anos e sem mãe aos dezasseis. A sua juventude, se se pode chamar juventude a uma escolaridade precocemente interrompida para se perder de trabalho nos infinitos hectares de searas, acabou nesse momento. Impôs-se o luto, que numa aldeia perdida no Alentejo profundo se arrastou até quase se perder o brilho dos seus olhos. Foi obrigada, como se de um favor se tratasse, a deixar a casa onde ficaram a viver os seus irmãos com a tia Nena. A casa dos meus tios, para onde foi morar a minha mãe, ficava na mesma rua onde morava o meu pai, sem padrinhos nem sorte que o protegessem, ajudassem ou explorassem. A minha mãe pagou caro, em trabalho e falta de liberdade, o privilégio de ter conhecido, vinte anos antes do meu pai e das crianças da aldeia, o sabor de uma banana. Era um luxo este fruto numa terra em que o trigo sobrava mas o pão escasseava. A minha mãe continuou, então, a trabalhar no campo, durante o dia, sobrando-lhe as noites para a lida da casa, para lavar, engomar e remendar as grossas roupas do tio e dos sobrinhos da tia Clotilde. A minha mãe estava de luto, não havia lugar para bailes, as ansiadas matinées, nem para joviais e ligeiras conversas com as outras raparigas quando, à noite, depois dos cinco feijões a boiar num caldo que cheirava a borrego, ou nem isso, puxavam as cadeiras de verga para a porta e a rua se enchia de mulheres que apenas tinham como horizonte a sobrevivência. Espanto-me, ainda hoje, quando ouço as histórias que a minha mãe conta, a sua facilidade em rir, característica que não se perdeu ao longo dos anos, apenas ficou cansada quando eu lhe pesei mais do que tudo. Característica que eu herdei, dela e do meu pai, cada um com o seu distinto sentido de humor que, em comum, tinham uma cumplicidade e uma vivência que, acima de tudo, os manteve unidos.
Mas as visitas não se ficavam por aqui. Havia ainda a tia Nena, a que ficou com os irmãos da minha mãe, também irmã do meu avô materno, eternamente solteira. Esta foi, provavelmente, a pessoa mais bondosa que já conheci e é das pessoas mais presentes no meu imaginário. Morreu sozinha na sua casa quando eu era pequena demais para ter aprendido a conhecê-la, verdadeiramente. Vivia sozinha na casa que tinha pertencido aos meus avós maternos. Era uma casa com disposição similar à dos meus avós paternos, mas necessariamente mais sossegada. No quarto junto à cozinha, a minha tia Nena tinha uma arca. Era uma arca de madeira com a função de uma despensa. O que havia para guardar era em tão pouca quantidade que uma arca era um exagero, mas era do que se serviam aquelas pessoas, animais de hábitos e aceitação. Dentro da arca guardava-se o toucinho branco, salgado, com um imperceptível veio de carne magra, ou menos gorda. Guardava-se o pão que se cozia uma vez por semana e que aprendemos a preferir nos últimos dois dias da semana, já duro, quase seco. Guardava-se o queijo em meia cura, que se deixava curar o mais possível para que rendesse mais: uma lasquinha de queijo, com casca, que nada se podia desperdiçar, para uma fatia de pão, também não muito exagerada em tamanho. Guardava-se o café que se fazia todas as manhãs, mais ou menos forte, conforme a quantidade disponível e o dinheiro que havia para comprar mais. Guardava-se o resto do peixe frito, que só era resto porque se dividia um carapau ou uma sardinha em três para três bocas, azar de quem ficasse com a cabeça. O que sobrava, então, roubado à fome da véspera, comia-se no dia seguinte, com o café da manhã e estava-se pronto para mais um dia de ceifa ou monda ou de semear adubo, que era afinal espalhar adubo, e que era dos trabalhos mais duros daqueles campos, que era o trabalho a que recorria o meu avô paterno para conseguir levar menos miséria para casa. Guardava-se o feijão e o grão que eram um desafio para quem os comia. Quase se poderia oferecer um prémio a quem encontrasse mais do que cinco feijões ou grãos no prato, assim houvesse dinheiro para prémios. Na mercearia compravam-se ossos, não havia dinheiro para carne, que emprestavam algum sabor aos feijões e grãos contados. Se a miséria era maior, se o clima não ajudava e não havia trabalho, tornavam a cozer-se, algum sabor haviam ainda de deixar no caldo. Guardava-se o sal, pouco, que não havia carne para salgar e pouca comida havia para temperar. Finalmente o melhor, guardava-se a erva-doce, que mais tarde eu comprava em saquinhos nos hiper-mercados, com a vã ilusão de que conseguiria recuperar ínfimos instantes de serenidade, de felicidade, aquela felicidade de quem crê que um cheiro perdido e reencontrado na memória nos pode redimir com a vida toda. Essa mistura de cheiros alia-se à bondade desta mulher que nos contava histórias, abrindo livros antigos que já tinham encantado a minha mãe e as minhas tias, alia-se à felicidade que era ir à terra, ao cheiro do candeeiro a petróleo, dos limoeiros no quintal, das azeitonas caídas das velhas oliveiras e que pisávamos no chão, enquanto brincávamos. Este cheiro só o reencontrei, muitos anos mais tarde, numa feira gastronómica que visitei com os meus pais, mas ainda assim, apenas assemelhado, onde se reencontravam os sobreviventes dessa miséria absoluta, vitoriosos afinal.
Depois de mais um almoço desorganizado em casa dos meus avós, mas farto e sempre delicioso, havia mais uma visita obrigatória, desta vez à cidade. A irmã mais velha da minha mãe, a minha tia Almerinda, sempre foi a mais vaidosa das irmãs. Casou com um caixeiro, o que lhe conferia um certo status perante toda uma família de trabalhadores rurais, segundo cria. Eram vaidosos e algo arrogantes, estes tios. Tinham uma filha, a minha prima Anabela, pouco mais velha do que eu, que era mais menina de cidade do que eu. Nesta casa não se estava à vontade, apesar de nos fazerem crer que se podia estar. A minha tia tinha um jarrão de louça branco, enorme, na entrada da casa, que era a sua principal preocupação quando os visitávamos. Temi sempre que eu ou o meu pai o quebrássemos, ou, muito mais tarde, a minha filha, já que teríamos de carregar essa culpa toda a vida. O meu pai é um pouco distraído e, no meio da conversa, o meu tio David interrompia-o para lhe pedir que afastasse a cadeira da parede, para lhe chamar a atenção acerca de uma gota de vinho caída na toalha ou de um pingo de gordura caído na camisa. Este meu tio, sem o saber, contribuiu para que eu desenvolvesse uma certa atitude de paternalismo para com o meu pai, se isso é possível, fazendo com que eu o defendesse e sublinhasse que achava graça aos seus descuidos.
Eram tão irritantes na marcação de terreno do seu clã familiar de três pessoas que ninguém se sentia verdadeiramente bem na sua presença. Pouco se davam com os familiares, excepto nas poucas vezes em que trocávamos visitas, e não lhes conhecemos amigos que perdurassem. Eram mesquinhos, rancorosos e sobranceiros, sem que alguma vez o tenham admitido. Claro que a minha mãe, no seu modo muito próprio de desculpar os outros, ainda mais quando nos outros se incluía a sua própria irmã, não os via deste modo, nem gostava que eu ou o meu pai o fizéssemos. Aqui reinava a ordem. Nesta casa, imaculadamente limpa, não se corria nem se falava alto. Estes tios eram afáveis, a seu modo, apesar de tudo. Na mesa não faltava nada, se bem que enquanto comíamos fizessem questão de salientar a qualidade dos petiscos e de dizerem que só eles sabiam onde se podiam comprar esses bens assim de tão boa qualidade. Eu costumava passar alguns dias das férias de Verão com esta minha prima, de quem gostava muito, mas dessas visitas poderei falar mais tarde. Depois do almoço, seguíamos todos, ordeiramente, para o café. De cada vez que os visitávamos, os meus tios faziam questão de nos apresentar um café novo; nunca se habituaram a frequentar o mesmo, assim como nunca se habituaram ao convívio com ninguém. Para salientar o enorme amor que os unia, e que faziam questão de mostrar que acreditavam ser maior do que o de qualquer outra família, dividiam o pacote de açúcar pelos seus três cafés, sem que fosse preciso falarem disso, mas numa notória ostentação de cumplicidade. Em termos políticos o meu pai e o meu tio David discordavam, forçosamente. As mulheres pediam-lhes, por vezes, que evitassem o assunto, mas tanto um como outro as ignoravam; o meu pai por levar esse assunto bastante a sério, o meu tio por gostar de marcar a diferença. Mas este pode ser um juízo de valor injusto, admito.
Apesar de tudo, gosto destes meus tios, nesse modo familiar que temos de gostar das pessoas com quem crescemos, que nos habituámos a considerar como parte de nós, pelo frágil laço do sangue.
Lembro-me que uma vez, em casa dos meus tios, à mesa, depois do jantar, comíamos chocolate. O meu tio David, a certa altura, pôs o último na boca. A Anabela protestou, em jeito de criança, e o meu tio deitou-o, já mastigado, na palma da mão e quis dar-lho, sublinhando essa cumplicidade que nesse momento, para sua tristeza, lhe saiu gorada, já que a minha prima fez uma cara de nojo e o recusou. Esta é a imagem que guardo dele. A de um homem que votava um amor quase incestuoso à sua filha, inundando-a de carícias e beijos que contrastavam com a atitude de toda uma família contida e nada dada a manifestações físicas de carinho.
A árvore de Natal e o presépio eram decorados com todos os requintes. Passavam o Natal sozinhos, mas faziam tudo a preceito. Esperavam pela meia-noite para que a Anabela pudesse abrir os presentes, e só depois de deitavam. Mas isso eu nunca presenciei, porque regressava à aldeia, ao caos da casa dos meus avós que era, afinal, a minha casa. Aí esperavam-me as minhas outras primas, tão ansiosas quanto eu, esperava-nos o lume aceso, as conversas sobrepostas, a boa-vontade, a minha avó com o seu lenço preto na cabeça e o avental novo e lavado preso à cintura, o meu avô com o seu chapéu preto e a sua eterna boa disposição.
Não ficávamos muito tempo na terra, os adultos tinham de voltar a trabalhar. A Maria Manuel e eu arrumávamos as nossas coisas à última da hora, adiando a tristeza de partir. A despedida conseguia ser um caos ainda maior do que os dias precedentes, tentando arrumar no carro a bagagem que tínhamos levado connosco, os presentes que tínhamos recebido, os queijos frescos, os curados, as linguiças, o pão, enfim, o dobro do volume com que tínhamos chegado.
À partida toda a gente se atropelava à porta, cruzávamo-nos para os beijos e abraços da despedida, eu e as minhas primas mais novas segredávamos as últimas confidências, os últimos desejos de boa sorte, a minha avó distribuía beijos repenicados e recomendações, rezando, entre dentes para que fizéssemos boa viagem, a minha tia Aldinha ria, ria toda ela, boca, olhos, gestos.
Rir sempre foi apanágio desta família. O meu avô tinha um enorme sentido de humor, oportunas e inspiradas tiradas que o meu pai veio a herdar, se isto se herda. A minha tia Aldinha, numa atitude quase infantil, ria em qualquer circunstância, principalmente em velórios. Esta minha tia é dona de tantas histórias de risotas, de “frouxos”, como lhes chamamos, em velórios, que se poderia fazer um livro a partir dessa matéria. Não que nos tenha morrido muita gente na família, mas na aldeia, sempre que morre alguém, é hábito toda a gente dispensar um pouco do seu tempo, no caso das mulheres a noite inteira, para o velório, já que todos se conhecem.
Quando a nossa tia Alda, a militante, morreu, presenciei um desses “frouxos”. Durante a noite, porque o cansaço acaba por nos vencer, um cunhado da minha tia acabou por adormecer, na sala do velório, junto ao corpo. Apesar do sono leve, conseguiu chegar a sonhar, e no sonho começou a pontapear o ar, repetidas vezes. Só esta situação, numa situação dramática e pesada como a que vivíamos, bastou para que a minha tia Aldinha começasse a sentir a vontade de rir crescer dentro de si. A mulher do homem adormecido sentiu vontade de justificar o marido e explicou então que, como habitualmente, o homem sonhava que matava uma cobra. Deu então uma cotovelada ao marido para que ele acordasse e perguntou-lhe: “Então, mataste a cobra?”. Foi o bastante para que o riso explodisse a dois metros da minha tia morta, agravado pela culpa de nos rirmos em tal situação. A minha tia Aldinha então lá contou daquela mulher que, num outro velório, chorava o marido, lamentando o arroz-doce que havia feito pela manhã e que ele não tinha chegado a comer. E o riso continuou, como continuava sempre, a minha mãe e a minha tia Maria lembrando também histórias similares que poderei contar depois. Era sempre um descalabro quando começávamos a rir, bendita família.
A viagem de regresso a casa era como o regresso de qualquer festa, um regresso nostálgico, mas comprazido. Entre acenos e últimas despedidas começávamos a deixar para trás a aldeia, as casas caiadas de branco, as ruas irregularmente calcetadas, a lama, os cães adormecidos a meio da faixa de rodagem, os velhos, muito velhos, todos de chapéu preto na cabeça e cigarro pendurado no canto da boca, parados na esquina apelidada de “esquina dos maldizentes”, deixávamos para trás mulheres de lenço na cabeça que carregavam as compras para o almoço e infusas cheias de água. Por fim a estrada que nos levava à cidade, à distância, à nossa vida de todos os dias.

1 comentário:

Unknown disse...

Enfim reservei tempo para ler esta linda saga, agora minha vida ficou mais rica de tios, avós e primas e de saudades de natais que não viví