23 de abril de 2008

abril, 1974

Nasci numa família de gente de trabalho. As vivências que me foram sendo contadas e as que me vi forçada a partilhar deram-me um certo tipo de consciência e visão do social que nunca me abandonaram.
O 25 de Abril de 1974 apanhou-me com 3 anos e meio. Tenho a sorte de não ter conhecido ou sentido na pele o antigo regime, a pide, o medo, as pesadas botas que pisavam pescoços e punhos cerrados, mas, por outro lado, acompanhei os meus pais nas lutas sindicais, nas greves, nos comícios, nas jornadas de trabalho, na construção das festas do Avante!, da Amizade, na distribuição de parques infantis feitos nas horas mortas dos metalúrgicos, nos bailes ao som dos Vermelhos, nas sessões de esclarecimento. Empunhei bandeiras, gritei de punho no ar exigindo o salário que não pagavam aos meus pais, chorei de raiva e de tristeza quando vi a polícia carregar sobre quem se manifestava, onde se incluíam os meus pais e seus camaradas, encurralando-os como animais.
O 25 de Abril está no meu imaginário, tanto como na minha consciência política, social e humana. Está nas primeiras canções que cantei, nos primeiros poetas por quem me apaixonei, nas primeiras festas onde cerrei os dentes e o punho e gritei que fascismo nunca mais. Está nas paredes do meu quarto de adolescente onde colava posters do Che Guevara e do menino da metralhadora em vez dos ícones pop da época. Está no Kuffieh que usei ao pescoço no inverno e à cintura no verão durante anos. Está na estante da sala dos meus pais onde imperava o vermelho das lombadas dos livros de Lénine, de Gorki, de Marx, de Álvaro Cunhal, na foice-e-martelo que desenhava na mala de cabedal que usava na escola.
O 25 de Abril, com tudo o que nos trouxe, está gravado no padrão deste pano de fundo que me forma.
34 anos passados, Abril não se cumpriu, mas não ficou por cumprir. Por nossa responsabilidade, por culpa do nosso comodismo e facilitismo, resta-nos a ilusão de que somos livres, porém as ilusões não nos fazem viver só por si mas sim como impulsionadoras para uma melhor e maior realidade.
Pelo sonho é que vamos. A nossa realidade, todavia, é bem diferente do que a sonhámos. Assinalar o 25 de Abril é agora um ritual em que se pretende perpetuar uma memória, como se tivéssemos de olhar para uma fotografia para recordarmos a cara da pessoa que amámos, é um ritual mais do que o afirmar de uma realidade, mais do que um bater o pé à direita. Dizia o poeta que as portas que Abril abriu nunca mais ninguém as fecha. Digo eu que se referia a sabermos que é possível lutar e vencer, mais do que à conquista em si mesma.
Mas digo também que nada está irremediavelmente perdido enquanto houver pessoas que mantêm acesa a chama da vontade de um mundo mais justo.

1 comentário:

Anónimo disse...

Pois que confesso que gostava que não tivesse havido 25 de Abril.

Não, não por qualquer simpatia com o obscurantismo corporativista, estatista e anti liberal da União Nacional, a existência de uma censura feita por ignorantes, a manutenção de uma guerra ultramarina sem visão politica consistente ou a lógica da Lei do Condicionamento Industrial.

O que eu gostava era que tivesse sucedido como em Espanha, por exemplo, tendo lugar uma transição pacifica e civilista, reformadora, sem rupturas profundas e radicais, mortos, feridos e descolonizações nada exemplares.

Não me venham dizer que tinha que ser assim: a ditadura espanhola era mais brutal ( basta evocar o garrotamento dos presos da ETA ainda em 1975)e a justeza do argumento caótico é tão válida como como o inverso, isto é, a argumentação de que tinha que ser "assim" antes do 25 de Abril, como se comprova como foi "depois".

Quanto ao Golpe em si ( precisão metodológica: é golpe, sim,e não "revolução" como qualquer politólogo poderá confirmar) teve o grande mérito de ser isento de sangue, o que comprova a genuina boa fé e quiçá alguma ingenuidade dos jovens oficiais que, essencialmente, não queriam fazer aquela guerra pornaquelas condições. A esta posição corporativa (ainda e sempre as corporações...)se pode hoje acrescentar, reconhecidamente uma certa visão utópica de alguns deles mais politizados (maxime Ernesto Melo Antunes), mas estou em crer que nenhum deles anteviu a magnitude da mudança que iriam induzir.

Lamentavelmente, o espírito libertador do 25 de Abril foi hipotecado pela deriva totalitarista do 11 de MArço e do PREC, e só foi resgatado pelo 25 de Novembro, por Eanes, pelas primeiras e contestadas eleições para a Assembleia Constituinte e pela Constituição de 1976. O ideal era que se tivesse passado do 25 de Abril directamente para o 26 de Novembro, sem nacionalizações, Acordos de Alvor, ocupações,unicidades sindicais, Reformas Agrárias, Conselhos da Revolução e paises a caminho do socialismo....

O Pais demorou pelo menos 15 anos (até à revisão constitucional de 1989) a recuperar dos danos daquele Verão de 1975, mas hoje, pode dizer-se que "Abril se cumpriu", apesar de tudo: democratizou-se parlamentarmente bem, descolonizou-de embora depressa e mal e vamo-nos desenvolvendo como podemos.

Quanto a celebrações, gostava de ter celebrações que não fossem propriedade de ninguém, sem apriorismos.As oficiais são o que são, as populares foram tomadas por uma facção, embora aí resida algum demérito dos que são como eu.

Para mim, que sou liberal, queria comemorar a Liberdade sem o peso da igualdade, nivelada por baixo. Por isso, é que não posso descer a Av. da Liberdade de braço dado com aqueles que são contra a Globalização ( que é o mesmo que ser contra a electricidade), os que apoiam um tal Castro que proibiu televisões, telémóveis ou dólares, os que são a favor das repúblicas ditas "populares e democráticas", os que foram contra a adesão de Portugal à CEE, os que são pelo predominio do público sobre o privado, do colectivo perante o individual ou da iguladade sobre a concorrência.

Não posso desfilar junto dos que acham que o lucro é imoral, os direitos sempre adquiridos e os que acham que a verdadeira sociedade perfeita deveria ser "outra", da qual não temos a minima evidencia de poder existir, tal como o Paraíso dos cristãos...

Para mim, o único modelo aceitável é a democracia parlamentar representativa, burguesa e electiva, fundada na igualdade de oportunidades e respeito pela esfera individual dos cidadãos, num modelo capitalista e liberal.Mesmo neste modelo, há ainda tanto, mas tanto a aperfeiçoar concretamente, aqui e agora até estarmos numa verdadeira Sociedade Aberta...

Mas, até lá, estarei empenhado, com a palavra e atitude cívica, democrática e republicana, na defesa da Liberdade, sempre a liberdade!!!

Nota: também provenho de uma familia de trabalho, ond eo meu pai teve a oportunidade de perder o emprego 2 anos depois do 25 de Abril, porque uns quantos iluminados decidiram despedir o patrão e colocar a empresa em "auto-gestão democrática", e ali não havia Estado que tivesse intervido e pago os salários....até hoje!