15 de abril de 2008

o passado como uma casa


Sentada à minha frente, na esplanada, óculos escuros a esconderem os olhos pesados, cigarro a disfarçar o tremor das mãos e os lábios tristes, ia falando. Dos homens que a tinham marcado, como se só essas marcas, como se só essas histórias fizessem dela quem hoje é.
Eu sei melhor, mas deixei-a falar.
Do R(.), o seu primeiro amor. Da primeira vez que se deitou nua com um homem. Da posse doentia que não lhe deixava espaço sequer para ir olhando pela janela do autocarro, querendo-a de olhos baixos e roupa larga. Da culpa quando sentia prazer. Da bofetada que lhe partiu os óculos de estudante. Do medo de dizer qualquer coisa que o melindrasse. Da marcação cerrada. Do machismo. Da juventude mal perdida.
Depois, do E(.), da paixão exacerbada que lhe tirou o sono, a fome e o sossego. Que a deixava pregada em casa à espera de um telefonema. De como lhe parecia que o via em cada homem com quem se cruzava. Da angústia da frieza desse homem que só mais tarde, tarde demais, se renderia aos seus pés. Do brilho dos seus olhos verdes. Do seu sabor a sal. Do seu ventre liso e da pele bronzeada. De como guardou religiosamente o pouco que lhe deu. De como se sentiu perdida quando deixaram de se ver. De como se vingou de cada vez que, mais tarde, tarde demais, se encontravam e ela já não sentia nada por ele.
Depois falou do M(.). Da cumplicidade, dos risos, das noitadas, da sensação de liberdade. Dos amigos. Das aventuras. Das férias. Das descobertas. De como o traíu com o E(.). De como se sentiu mal. De como nada voltou a ser o que era. De quando ele lhe mentiu, pondo em causa uma parte importante da sua segurança. De quando lhe disse que não queria voltar a vê-lo e ele lhe roubou um beijo, na despedida. De como esse beijo ainda a deixa zangada.
Depois, do P(.). Da sensação de sonho tornada realidade. De como pensou que era bom demais para ser verdade. De como se deixou ir nesse conforto. De como todos os seus medos desapareceram. De como acreditou em fazer planos. De como os pôs em marcha. De como o traíu. De como se sentiu culpada. De como se sentiu mal. De como saíu de mais uma história por não saber como ficar.
Depois, baixinho, falou-me do outro P(.). Da ilusão de paixão. Da solidão que abriu a porta ao engano. De mais perseguição doentia. De ter medo de sair à rua e tê-lo à sua espera. Da fuga em carro emprestado para não ser seguida. Das emboscadas.
Depois falou-me do J(.). De como, ainda assim, era o único que a fazia arrepender-se. De como não tinha valido a pena. De como não tinha nada a guardar. De como nem vontade tinha de me contar dos silêncios, das discussões intermináveis, da presença imposta a que não sabia como fugir.
Apagando o cigarro, disse-me que mais valia que a sua história fosse feita só dos outros, dos que nem guardaram nome, dos que passam ao de leve, que mais valia que não fosse mulher de se apaixonar, ou então que não fosse mulher de se cansar, ou que não fosse mulher de ter medo, ou enfim, que não tivesse memória.
Eu, que nem sequer tenho nada de memorável para contar, olhei-a enquanto acendia outro cigarro. As mãos ainda lhe tremiam e os lábios eram ainda tristes. Lembrei-me daquilo que não me chegara a contar, adivinhei-lhe as cicatrizes, quis mimá-la.
Mas há mulheres a quem é impossível fazer-se bem. E fiquei quieta.

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