15 de julho de 2008

Esta mão sai hoje de cena. A outra ficará, se quiser. Esta sai.

14 de julho de 2008

sadness, picasso

De repente, tudo perdeu sentido. As palavras escritas e guardadas em rascunhos, à espera de vez. Os sonhos e as esperanças. O amor. As horas.
De repente a tristeza imensa, intensíssima vestida de vazio.

10 de julho de 2008

nem consta que soubesse de contabilidade

Virava-me e depois de me secar o suor, escrevia-me nas costas a contabilidade dos seus dias. Ia rasurando, cortando o que estava a mais, somando o que fazia falta, descendo na minha pele, até chegar ao saldo desejado. Porque é que o que se deseja passa a ficar tão longe?, perguntava-lhe eu. Dizia-me: Shiu, não me desconcentres. E continuava a contabilidade, o dever e o haver, os ajustes, os arredondamentos, os acertos finais. Até chegar ao saldo desejado.

8 de julho de 2008

saint-exupéry

- Adeus, disse ele...
- Adeus, disse a raposa. Eis o meu segredo. É muito simples: só se vê bem com o coração. O essencial é invisível para os olhos.
- O essencial é invisível para os olhos, repetiu o principezinho, a fim de se lembrar.
- Foi o tempo que perdeste com tua rosa que fez a tua rosa tão importante.
- Foi o tempo que eu perdi com a minha rosa... repetiu o principezinho, a fim de se lembrar.
- Os homens esqueceram essa verdade, disse a raposa. Mas tu não a deves esquecer. Tu tornas-te eternamente responsável por aquilo que cativas. Tu és responsável pela tua rosa...
- Eu sou responsável pela minha rosa... repetiu o principezinho, a fim de se lembrar.

7 de julho de 2008

a alma dos outros

"O que é que a gente não faz por amor", canta Marisa Monte. Consigo vê-la, enquanto canta, as suas mãos, que também elas falam, a linguagem corporal.
O que é a gente não faz por amor? Vendemos a alma ao diabo, diriam alguns amigos meus, se soubessem. Dormimos com o inimigo, diriam outros.
No meu egoísmo penso, sem dizer nada a ninguém: e por nós, o que fazem por amor? Aquilo que é mais fácil ou aquilo que gostaríamos que fizessem?

conforme

Esta página abre e fecha com a sabedoria excelsa de Ricardo Reis, "Quer pouco; terás tudo. Quer nada; serás livre."
Com um encolher de ombros, breve, penso "This is as good as it gets", o melhor será usufruir enquanto existe, e de olhos fechados penso "Mais vale não esperar nada, não esperar a festa de celebração, de coração pleno, de despojamento, de entrega absoluta".
Não consigo querer nada, mas talvez consiga querer apenas não querer mais do que acreditar.

4 de julho de 2008

"câiguin"

Às vezes a minha amiga Flor surpreende-me. Não pelos fantásticos textos que aqui publica, obviamente, que esses devem merecer melhor espaço, suponho, mas pelas loirices que às vezes dispara.
Acerca de um jogo que instalei, uma demo com 60 minutos, disse-me que se não o queria comprar, tinha de sacar uma "câiguin".
E eu, espantadíssima com o seu vasto saber, perguntei, candidamente: "Uma câiguin?"
"Sim", respondeu-me, "para jogares sem limites."
"Uma câiguin é... um keygen?", perguntei com medo de resposta afirmativa.
"Então, não é assim que se lê?"
Às vezes não sei se ria se chore; se a beije na testa ou se lhe parta a cara.

3 de julho de 2008

armazém

Na segunda gaveta da mesa de cabeceira, as cuecas. Na terceira gaveta, os soutiens. Na primeira, cremes, desodorizantes, pílula, toalhetes, lenços de papel.
Em cima da cómoda, anéis, pulseiras. Na primeira gaveta da cómoda, relógios, brincos, colares.
Nas duas portas do roupeiro mais próximas, calças e blusas.
Tudo mesmo à mão, tudo aquilo de que preciso, que quero e uso diariamente.
Depois, nas mais distantes, nas gavetas do doutro lado da cama, nas gavetas mais baixas da cómoda, nas que ficam debaixo da cama, nas últimas portas do roupeiro, aquilo que raramente procuro.
Há ainda um outro roupeiro, noutro quarto, com coisas ainda mais esquecidas.
Depois há também os dias de reorganização, em que dou voltas à casa e acabo com 3 ou 4 grandes sacos de lixo.
Deixar à mão aquilo que queremos para todos os dias, afastar o que ainda se guarda porque pode ainda fazer falta ou porque ainda não chegou a hora de deitar fora, e sim, deitar fora o que já não se quer. Para não nos perdermos em dispensáveis. Para manter as coisas no seu lugar. Para umas não atrapalharem outras. Para umas não tirarem lugar a outras. Para que haja espaço para vivermos.
Fazemos isto em nossas casas.
Será assim tão difícil fazê-lo nas nossas memórias?

2 de julho de 2008

insustentável


1
Quando eu era pequena, teria 5 ou 6 anos, um homem já velho perguntou-me como me chamava. Envergonhada, de mão dada com a minha mãe, disse-lhe o meu nome baixinho. Não o percebeu bem. "Teresa?", perguntou. Não, não era Teresa.

2
Na adolescência conturbada que foi a minha, como a de tantos, li "A Insustentável Leveza do Ser". Também tentei ver o filme, mas saí da sala a meio por me ver tão perturbada pelas vidas de Tomas, de Sabina. De Teresa.

3
Quando, já mulher feita, me iniciei nos tentâmes da prosa, as minhas heroínas começavam invariavelmente por ter o nome de Teresa. Depois, quando os alterava para não me repetir, era como se me estivesse a enganar a mim mesma. Relia os textos, mas era sempre Teresa o nome que lia.
4
Um dia pensei ter percebido tudo. Nesse dia decidi reler "A Insustentável Leveza do Ser", a esta nova luz que é a da idade que tenho, e nesse dia pensei ter percebido tudo. Eu sou a Teresa. Não a do Kundera, mas a que gerou a do Kundera. A mesma que gerou as minhas heroínas. Um pedaço aqui, outro ali, junto-os e sou eu. A Teresa.

5
Os acasos. Para Tomas e Teresa foram quantos? Seis? Para que se cruzassem. Para que sim. Os acasos. “Pássaros poisados nos ombros.” Há quem diga que às vezes pesam. Para saber disso é preciso não se andar distraído. E depois, claro, não se andando distraído a gente dá pelos outros. E pelos sentimentos dos outros. A compaixão. Que nas línguas derivadas do latim significa que ninguém pode ficar indiferente ao sentimento de outrem.

6
É como se estivesse presa a Teresa. Como se me fosse mais fácil pegar em fotocópias e contar a vida a preto e branco, com sombreados.

7
Um dia pensei ter percebido tudo. Todas as mulheres poderiam ser a Teresa. Umas mais fortes, outras mais fracas. Umas mais submissas, outras mais inconformadas. Umas comandadas pelo intelecto, outras pela emoção. Outras vivendo dicotomias de dia sim dia não. Algumas nunca se apercebendo de que são a Teresa.

8
“O que é positivo: o peso ou a leveza?”Há quem tenha vivido a leveza de não ter ciúme, medo, insegurança e tenha sentido essa leveza como um peso incomportável. Há quem viva com os ombros carregados desses outros pássaros que são os que minam a auto-estima e não atravesse as portas que se lhe abrem para a fuga.

9
Há pássaros, desses geneticamente habituados a viver em gaiolas, que não fogem quando lhes surge a oportunidade. Também há pessoas assim.

10
Não me lembro da cara de Teresa. A do filme. Lembro-me do chapéu de côco de Sabina. Lembro-me de Tomas a olhar para o relógio enquanto se apressava em cima desta amante. Lembro-me de uma mulher, que era Teresa, andando pelas ruas enquanto fotografava os tanques soviéticos da invasão. Mas não me lembro da sua cara. Na minha memória surge uma mulher magra, de cabelos curtos e escuros e a sua cara é a minha.

11
Releio esta insustentável leveza e o grafismo ilude-me, ou eu a ele. O nome Sabina surge-me sempre como Sabrina. Como da primeira vez. Assim como leio Teresa no lugar dos outros nomes que foram a segunda escolha para as minhas heroínas.
Há coisas a que parece ser muito difícil fugir.

12
São muitas as relações em que estamos por metade enquanto o nosso pensamento está alheio, quase como Tomas em cima de Sabina, apressado.
Assim como quando vamos ao teatro. O que vemos são os actores, o palco, o que nos mostram. Por trás deles vive-se toda uma intensa corrida, uma espécie de murmúrio imperceptível, como nos quadros de Sabina.
Esse murmúrio é quem somos, a Teresa, a original. E os actores e o palco o esquisso do que gostaríamos de ser.

13
A primeira vez que se soube objecto de uma traição, desse saber que é conhecer factos mais do que senti-los, a mulher chamava-se Teresa.
Só se lembrou disso mais tarde.
Mais tarde, também, leu que a traição não é mais do que querer sair da fila e partir para o desconhecido.
Não acreditou.


14
Porque teria o velho ouvido Teresa quando lhe disse o meu nome?
Tenho-o repetido baixinho, o nome sussurado com voz de menina. Não é parecido.
Um acaso. Desses a que só damos importância quando nos faltam as coisas que dizem ser verdadeiramente importantes.

15
Quando me passeei pelas ruas de Praga era ainda nova demais para saber que Teresa estava em mim.
Era como se estivesse adormecida dentro do livro que se lera impunemente, na praia, irresponsavelmente.
Se há crime e castigo, esse foi o meu crime e sou agora castigada.

16
Agora sei porque não gosto das outras mulheres. Tenho medo delas. Todas elas são minhas rivais, mesmo que nenhuma de nós saiba com que rivaliza.
Um nome de mulher, apanhado assim do nada, cerra-me os lábios gelados de ciúme. Ou de inveja. Finalmente, de medo.
Também Teresa só crescia detrás da sua lente mágica ou de livro de lombada grossa nas mãos.
Também Teresa tinha medo.
Em tudo me imita. Mas dela não tenho medo. Somos demasiadamente íntimas para que pudesse temê-la.

17
Teresa ensinou-me umas coisas sobre o ressentimento. Aprendeu-as com Shakespeare, e passou-mas.
Eu, que mais nova pedia sonhos para viver ou veneno para morrer, agora tomo veneno não sabendo que afinal morro.

18
Neste ponto, suponho que se ouvir o nome Teresa na rua, me viro para responder à chamada.
Seja como fôr o nome que temos é apenas emprestado, nada diz de nós, apenas diz do gosto ou opções de quem o escolheu para nós.
Posso ser Teresa de nome, já que o sou de caminho. Tal como sou outro nome qualquer, tanto faz, o que somos não é o nome que temos.
Houve estes acasos, é certo; talvez alguém tivesse trocado as voltas ao meu destino (se o houvesse!) e não me escolhesse o nome de Teresa a ver se lhe fugia, mas não podemos fugir de quem somos. Somos a nossa casa e é sempre para lá que voltamos.

19
Por vezes apenas a laranja. Mecânica.
O chapéu.
"Ofereces-me um chapéu de côco no meu aniversário?"

20
Pobre Teresa. Que caminho ainda por percorrer. Também eu, quando pela primeira vez traí, vomitei. Depois, ao chegar a casa, toda a água foi pouca para lavar o corpo, a boca. A consciência, essa, não se lava com água. Mas isso foi da primeira vez. Depois já não custa tanto. E com o tempo aprendemos a silenciar a voz inoportuna da consciência com frases feitas como a de Sabina, “Traír é sair da fila e procurar o desconhecido”.

21
Também eu me olho ao espelho.
Nua, tento ver-me de todos os ângulos. Sou no corpo como sou na alma: um todo dividido, um uno falsificado.
O corpo: metade sensual, metade anacrónico; metade apelando ao olhar masculino, metade angustiantemente dispensável.
A alma: metade pragmática, metade sonhadora; metade exigindo cada coisa no seu lugar, metade perdendo-se em emoções desarrumadas.

22
Como é isso de aprender a leveza? Aprende-se? Em livros que nos dizem que a resposta está... em nós mesmos.
Muito obrigada.

23
Teresa não podia conseguir renunciar à força. Logo, não poderia amar.
Ou então amar também não tem a ver com isso.
Mas então tem a ver com quê?

24
Não temos senão como voltar ao lugar onde fomos felizes. O que nos acontece, por vezes, é perdermos-nos no caminho de volta. A imagem que guardamos do lugar onde fomos felizes é adulterada por inúmeros factores e, por vezes, pensamos ter voltado e não voltámos. Depois dizemos que não se deve voltar aos lugares onde fomos felizes. Então voltamos onde, quando não podemos seguir em frente nem ficar parados?

25
Se teimo em ler 'Sabrina' onde está escrito 'Sabina', se teimo em ler 'Teresa' onde estão os outros nomes das heroínas das minhas histórias, isso poderá querer dizer que vejo o que quero, como quero? Que pinto e moldo a realidade a meu jeito? Então porque faço as escolhas que faço? Porque não escolho uma realidade mais leve, sustentável e suportavelmente leve?

26
Perdi-me de Teresa quando me perdi de mim.
O chapéu permance no bengaleiro. Tem pó. Devia ser escovado. Como ela fazia, sentada naquela cadeira, a que fica mais perto da janela, de costas para a luz, sentada sobre as pernas cruzadas.

póstumo
Como se estivesse fadada, desde o dia 1 deste texto, ao mesmo fantasma. Um fantasma de carne e osso que teima em sorrir-me enquanto estica a perna que, já me disseram, se parece com a minha, a fazer-me tropeçar, esperando pelo momento em que caio, o momento da minha derrota que será a sua vitória por não poder ter outras.

longe da vista, perto do coração

O Rogério em S. Paulo. O Charles em Paris. O Richard em Langport. Todos distantes, porque é mais fácil assim. Com cada um palavras das que não troco com quase ninguém.
Agora, correndo o risco de melindrar os outros, vou ser justa e honesta. É com o Rogério que as palavras fluem. Talvez porque... Não, não sei porquê. Porque conhece "a mão destra das 2 mãos, a surda e a rosa erótica"?
Sempre me foi mais fácil falar com os homens. As conversas de mulheres são menos fáceis. Os homens julgam menos. Estes homens julgam menos. Ou não julgam, sequer. O Rogério não me julga. Não me cobra. Não espera. E essa liberdade não são todos que a têm.
A mim, é-me valiosíssima.
Por isso, quando falo com o Rogério, o mais próximo dos distantes, sou uma matraca que não se cala, que fala pelos cotovelos, pelos tornozelos, pelos nós dos dedos...
Ah, se não soubesse melhor, pedia desculpas pelas secas...

1 de julho de 2008

em montparnasse


Nem sequer se pode dizer que eu tenha algum tipo de relação com cemitérios. Dos que me morreram, a única pessoa que visito na campa é a minha avó paterna. Não só porque sinto a sua falta, porque também sinto a falta dos outros. Não só porque ainda tenho coisas para lhe dizer, porque também fiquei com muito para dizer aos outros. Talvez porque me está tão longe, e quando faço 200 km para ir à aldeia, não posso deixar de percorrer meia dúzia de passos a pé para lhe fazer uma visita.

Vem isto a propósito da minha curta visita a Paris e da visita a 2 cemitérios.

De mapa na mão, não podia deixar de me aproximar fisicamente de Éluard, de Balzac, de Sartre, de Baudelaire, se de outras formas tanto me aproximei.

Mas foi junto à campa da Duras que tudo aconteceu. Foi junto a essa campa modesta, semi-abandonada, dissimulada entre outras, sob um velho vaso de barro com flores secas, que tive um vislumbre de quem sou. Sou, indubitavelmente, aquela que em jovem já era velha. Aquela que amou contra todas as conveniências. Aquela que escreveu -tão aquém do seu mister- para não morrer de solidão ou de desespero. Aquela que fumou cigarros seguidos desafiando a morte, escrevendo na escuridão, desafiando a cegueira.

Um vislumbre apenas, e foi tanto.

Neste momento, neste momento preciso, sei quem sou, sei que me basto, sei o que quero, sei de onde venho. Sei estas coisas todas, não sabendo nenhuma. Porque fisicamente perto da Duras, depois de tanto a ter acompanhado, tive um vislumbre de quem sou.

E cresci, de repente, como se me tivesse morrido a mãe ou o pai.

E neste momento, neste momento preciso, não tenho medo, não tenho medos. E sei que é possível que por vezes a vida não seja madrasta, e sei que é possível sobreviver-lhe quando me dá a provar o veneno da sua maçã.

"Rumo às caraíbas, o mar estava calmo. Mas disso ainda não consigo falar."