17 de março de 2008

lisnave


A propósito de uma conversa ontem à noite, e porque não sou capaz de homenagem melhor aos meus pais e seus camaradas de luta, resta-me um copy-paste.


Não sei se é o cheiro dos velhos estaleiros. Não sei se é o rio, ali mesmo à espreita. Não sei se é a imponência da grua. Não sei se é a recordação dos operários saindo aos magotes, calças de ganga, vozes altas, rostos cansados. Não sei se é a imagem dos panos pregados à vedação, exigindo direitos e salário. Ou se é a memória das lutas aí travadas, as concentrações, as chaimites, os sindicatos, as cargas da polícia, os homens e mulheres que daí partiram para a ponte 25 de Abril e outra vez a carga da polícia. Não sei se foram os anos em que os meus pais não traziam dinheiro para casa e o meu pai ia para o trabalho de bicicleta para eu ir de autocarro para a escola. Não sei se foram as noites que passei sem ver a minha mãe porque dobrava os turnos. Não sei se são as amizades que ali nasceram. Ou se eram os barcos. Não sei se eram as festas de natal onde cantávamos que natal “é o fruto que há no ventre da mulher”. Não sei se era o cheiro a tinta ou a cor dos fatos-macaco. Não sei se eram os papões-família-Mello. Não sei se eram as excursões para entregar pelo país os brinquedos para parques infantis que os operários faziam quando a administração recusava trabalho. Ou se era o casaco amarelo que abrigava a minha mãe nas manhãs agrestes de inverno. Não sei se é passar agora pela avenida e ver os autocarros passarem sem parar pelo que parece ser uma cidade fantasma. Não sei se era uma sensação de segurança, violenta e inesperadamente abalada. Não sei se é a juventude perdida dos meus pais. Ou a promessa de um sonho que afinal não o foi. Não sei se são os homens tristes. Ou as mulheres envelhecidas. Não sei se é a injustiça. Não sei se é o espectro do capitalismo. Não sei se é a história dos operários que aí morreram em acidentes de trabalho. Não sei se foi a preocupação de ouvir boas notícias do meu pai quando se sabia de mais um acidente. Não sei se são as histórias de amor e infidelidade. Não sei se é porque a comissão de trabalhadores dava aos filhos dos funcionários as prendas de natal que a administração não dava. Não sei se eram os óculos do meu pai sempre picados por soldadura. Ou as pernas da minha mãe queimadas pela água a ferver. Não sei o que é. Mas sei que me ofenderá ver ali nascer um qualquer empreendimento para que morram os homens e mulheres que ali começaram por ser jovens.

1 comentário:

Anónimo disse...

Pergunto-me quantas vezes já terei lido este teu texto. Não só aqui, claro. É um universo estranho para mim, já to disse, mas quase lhe sinto o cheiro, acreditas?