13 de março de 2008

da solidão

A irmã mais nova da minha avó paterna chamava-se Ana. Era pequenina, muito pequenina, sobrevivente de um parto de trigémeas, chamávamos-lhe Tia Anazinha. Foi casada toda a vida, bem, não toda, mas quase, com um homem a quem toda a gente sempre chamou Ti Chico Mouquinho. Trataram-se por você até ao dia da morte da minha tia, há uns 8 ou 9 anos. Não tiveram filhos.
O seu marido guardou cabras enquanto pôde trabalhar. Nunca fez outra coisa. Habituou-se a passar os dias sem a companhia de homens ou mulheres, entre cabras, no meio dos montes do baixo alentejo. Nunca nenhum dos dois soube ler.
Quando a minha tia adoeceu e depois cegou eram os sobrinhos quem cuidava dela, em casa, incapaz de se valer a si mesma. O meu tio, por afinidade, ria-se da sua cegueira, do descontrolo dos movimentos, da lucidez que lhe ia fugindo. Nunca aqueceu um prato de sopa à minha tia, nunca lhe puxou os cobertores para cima, nunca lhe perguntou onde doía.
Nós, as minhas primas e eu, éramos já mulheres, algumas já com filhas, e calávamos a revolta por respeito ao tio mais velho. As nossas mães lá iam mandando umas bocas, a ver se pegavam, mas nunca nada pegou naquela aridez.
Hoje o meu pai ligou-me a dizer que o Ti Chico Mouquinho tinha sido encontrado morto em casa. Liguei à minha prima e disse-lhe: Que tristeza deve ser uma pessoa morrer assim sozinha em casa. E ela disse-me aquilo que eu tinha pensado: Achas que merecia mais?
Eu não sei se ele merecia mais, nem me interessa. Mas a minha tia Anazinha, pequenina, tão pequenina, tão terna e humilde, tão indefesa, tinha, de certeza, merecido melhor.

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