8 de maio de 2008

Graça

Ontem, nem sei a que propósito, já deitada, lembrei-me da Graça, a minha amiga morta há tão poucos meses que ainda não me parece verdade.
Lembrei-me que quando a conheci ela devia ter a idade que tenho agora, tínhamos 19 anos de diferença e conhecemo-nos há 18 ou 19.
Fiquei surpreendida, de alguma forma. Lembro-me dela sempre da mesma forma. O cabelo com caracóis negros, desalinhados, as saias justas, as pernas finas, os saltos altos, a voz forte, o riso possante, a presença afirmada. O filho mais novo da Graça deveria, portanto, ser mais novo do que a minha filha é agora, mas também me parece que tiveram sempre a mesma idade.
Conheci-a quando fui trabalhar para a empresa onde ela punha e dispunha. Almoçámos juntas nesse primeiro dia, também com o Trindade e a Maria Manuel. Ao almoço a Graça disse, referindo-se a ter filhos ou filhas "Quem tiver éguas que as prenda, que os meus cavalos andam à solta." Fiquei quase chocada. Como podia uma mulher falar assim, pensar assim? Mas eu não conhecia a Graça, não sabia que ela mostrava esta carapaça dura, resistente, enquanto por dentro era de uma fragilidade assustadora.
Nessa altura a Graça ia a Ceuta aos fins de semana e contrabandeava casacos de cabedal, colchas e toalhas de mesa. Mais tarde abriu uma loja no nosso Alentejo e eu ia com elas, às vezes, na sexta à noite passar o fim de semana ao monte que lá tinha. Parecíamos duas miudas, cúmplices, alegres. Parávamos um pouco antes de chegar ao monte, para comprar pão. Esperávamos que o tirassem do forno e depois sentávamo-nos à mesa a comer pão com queijo de Serpa ou com chouriço, a beber vinho branco e às vezes não nos chegávamos a deitar.
Às vezes a Vanda e a Maria Manuel também iam. Então a Graça e a Maria Manuel levantavam-se cedo para ir ao Pomarão ver o Guadiana e eu e a Vanda só nos levantávamos quando voltavam, quebradas ainda, nós as mais novas, por termos ficado a jogar Trivial até de madrugada.
Depois, eu e ela íamos de férias juntas para o Algarve, com os respectivos companheiros. Cabanas, Lagos... Ela obrigava-me a comer fruta e peixe fresco. Eu defendia-a subrepticiamente doa ataques do Vítor, apanhávamos sol, fazíamos compras, tomávamos o pequeno almoço no terraço, ao sol da manhã, trocávamos confidências como fazem as adolescentes.
A última vez que nos juntámos todas, as quatro, foi no velório da Graça. Rimos porque o Vítor, marido da Graça desde os seus 19 anos, lhe levou uns ténis como última coisa que calçaria para ser sepultada. Toda a gente sabe que a Graça só calça saltos altos, mesmo morta. Mas o Vítor andava perdido, foram longuíssimos os meses em que a Graça lutou para se manter viva, e ele nunca saíu da sua cabeceira, estava desgastado.
Também rimos recordando-a de outras formas, todas as formas da Graça. Tínhamos um almoço marcado, as quatro, para quando a Graça saísse do hospital. Foi ela quem escolheu o sítio. Nós dissémos que sim, apenas a Vanda vendo as coisas como são e não acreditando já na sua recuperação. Tinha razão, 2 semanas depois a Graça morria. Agora já não é almoço, é jantar. E somos só três. E temo-lo vindo a adiar, nem sei bem qual de nós, talvez eu, que fiquei de marcar tudo e não há meio de o fazer.
Nunca mais falei com o Vítor. Nem com a mãe da Graça, nem com os seus filhos. Falta-me a coragem.
E falta-me a Graça.