2 de julho de 2008

insustentável


1
Quando eu era pequena, teria 5 ou 6 anos, um homem já velho perguntou-me como me chamava. Envergonhada, de mão dada com a minha mãe, disse-lhe o meu nome baixinho. Não o percebeu bem. "Teresa?", perguntou. Não, não era Teresa.

2
Na adolescência conturbada que foi a minha, como a de tantos, li "A Insustentável Leveza do Ser". Também tentei ver o filme, mas saí da sala a meio por me ver tão perturbada pelas vidas de Tomas, de Sabina. De Teresa.

3
Quando, já mulher feita, me iniciei nos tentâmes da prosa, as minhas heroínas começavam invariavelmente por ter o nome de Teresa. Depois, quando os alterava para não me repetir, era como se me estivesse a enganar a mim mesma. Relia os textos, mas era sempre Teresa o nome que lia.
4
Um dia pensei ter percebido tudo. Nesse dia decidi reler "A Insustentável Leveza do Ser", a esta nova luz que é a da idade que tenho, e nesse dia pensei ter percebido tudo. Eu sou a Teresa. Não a do Kundera, mas a que gerou a do Kundera. A mesma que gerou as minhas heroínas. Um pedaço aqui, outro ali, junto-os e sou eu. A Teresa.

5
Os acasos. Para Tomas e Teresa foram quantos? Seis? Para que se cruzassem. Para que sim. Os acasos. “Pássaros poisados nos ombros.” Há quem diga que às vezes pesam. Para saber disso é preciso não se andar distraído. E depois, claro, não se andando distraído a gente dá pelos outros. E pelos sentimentos dos outros. A compaixão. Que nas línguas derivadas do latim significa que ninguém pode ficar indiferente ao sentimento de outrem.

6
É como se estivesse presa a Teresa. Como se me fosse mais fácil pegar em fotocópias e contar a vida a preto e branco, com sombreados.

7
Um dia pensei ter percebido tudo. Todas as mulheres poderiam ser a Teresa. Umas mais fortes, outras mais fracas. Umas mais submissas, outras mais inconformadas. Umas comandadas pelo intelecto, outras pela emoção. Outras vivendo dicotomias de dia sim dia não. Algumas nunca se apercebendo de que são a Teresa.

8
“O que é positivo: o peso ou a leveza?”Há quem tenha vivido a leveza de não ter ciúme, medo, insegurança e tenha sentido essa leveza como um peso incomportável. Há quem viva com os ombros carregados desses outros pássaros que são os que minam a auto-estima e não atravesse as portas que se lhe abrem para a fuga.

9
Há pássaros, desses geneticamente habituados a viver em gaiolas, que não fogem quando lhes surge a oportunidade. Também há pessoas assim.

10
Não me lembro da cara de Teresa. A do filme. Lembro-me do chapéu de côco de Sabina. Lembro-me de Tomas a olhar para o relógio enquanto se apressava em cima desta amante. Lembro-me de uma mulher, que era Teresa, andando pelas ruas enquanto fotografava os tanques soviéticos da invasão. Mas não me lembro da sua cara. Na minha memória surge uma mulher magra, de cabelos curtos e escuros e a sua cara é a minha.

11
Releio esta insustentável leveza e o grafismo ilude-me, ou eu a ele. O nome Sabina surge-me sempre como Sabrina. Como da primeira vez. Assim como leio Teresa no lugar dos outros nomes que foram a segunda escolha para as minhas heroínas.
Há coisas a que parece ser muito difícil fugir.

12
São muitas as relações em que estamos por metade enquanto o nosso pensamento está alheio, quase como Tomas em cima de Sabina, apressado.
Assim como quando vamos ao teatro. O que vemos são os actores, o palco, o que nos mostram. Por trás deles vive-se toda uma intensa corrida, uma espécie de murmúrio imperceptível, como nos quadros de Sabina.
Esse murmúrio é quem somos, a Teresa, a original. E os actores e o palco o esquisso do que gostaríamos de ser.

13
A primeira vez que se soube objecto de uma traição, desse saber que é conhecer factos mais do que senti-los, a mulher chamava-se Teresa.
Só se lembrou disso mais tarde.
Mais tarde, também, leu que a traição não é mais do que querer sair da fila e partir para o desconhecido.
Não acreditou.


14
Porque teria o velho ouvido Teresa quando lhe disse o meu nome?
Tenho-o repetido baixinho, o nome sussurado com voz de menina. Não é parecido.
Um acaso. Desses a que só damos importância quando nos faltam as coisas que dizem ser verdadeiramente importantes.

15
Quando me passeei pelas ruas de Praga era ainda nova demais para saber que Teresa estava em mim.
Era como se estivesse adormecida dentro do livro que se lera impunemente, na praia, irresponsavelmente.
Se há crime e castigo, esse foi o meu crime e sou agora castigada.

16
Agora sei porque não gosto das outras mulheres. Tenho medo delas. Todas elas são minhas rivais, mesmo que nenhuma de nós saiba com que rivaliza.
Um nome de mulher, apanhado assim do nada, cerra-me os lábios gelados de ciúme. Ou de inveja. Finalmente, de medo.
Também Teresa só crescia detrás da sua lente mágica ou de livro de lombada grossa nas mãos.
Também Teresa tinha medo.
Em tudo me imita. Mas dela não tenho medo. Somos demasiadamente íntimas para que pudesse temê-la.

17
Teresa ensinou-me umas coisas sobre o ressentimento. Aprendeu-as com Shakespeare, e passou-mas.
Eu, que mais nova pedia sonhos para viver ou veneno para morrer, agora tomo veneno não sabendo que afinal morro.

18
Neste ponto, suponho que se ouvir o nome Teresa na rua, me viro para responder à chamada.
Seja como fôr o nome que temos é apenas emprestado, nada diz de nós, apenas diz do gosto ou opções de quem o escolheu para nós.
Posso ser Teresa de nome, já que o sou de caminho. Tal como sou outro nome qualquer, tanto faz, o que somos não é o nome que temos.
Houve estes acasos, é certo; talvez alguém tivesse trocado as voltas ao meu destino (se o houvesse!) e não me escolhesse o nome de Teresa a ver se lhe fugia, mas não podemos fugir de quem somos. Somos a nossa casa e é sempre para lá que voltamos.

19
Por vezes apenas a laranja. Mecânica.
O chapéu.
"Ofereces-me um chapéu de côco no meu aniversário?"

20
Pobre Teresa. Que caminho ainda por percorrer. Também eu, quando pela primeira vez traí, vomitei. Depois, ao chegar a casa, toda a água foi pouca para lavar o corpo, a boca. A consciência, essa, não se lava com água. Mas isso foi da primeira vez. Depois já não custa tanto. E com o tempo aprendemos a silenciar a voz inoportuna da consciência com frases feitas como a de Sabina, “Traír é sair da fila e procurar o desconhecido”.

21
Também eu me olho ao espelho.
Nua, tento ver-me de todos os ângulos. Sou no corpo como sou na alma: um todo dividido, um uno falsificado.
O corpo: metade sensual, metade anacrónico; metade apelando ao olhar masculino, metade angustiantemente dispensável.
A alma: metade pragmática, metade sonhadora; metade exigindo cada coisa no seu lugar, metade perdendo-se em emoções desarrumadas.

22
Como é isso de aprender a leveza? Aprende-se? Em livros que nos dizem que a resposta está... em nós mesmos.
Muito obrigada.

23
Teresa não podia conseguir renunciar à força. Logo, não poderia amar.
Ou então amar também não tem a ver com isso.
Mas então tem a ver com quê?

24
Não temos senão como voltar ao lugar onde fomos felizes. O que nos acontece, por vezes, é perdermos-nos no caminho de volta. A imagem que guardamos do lugar onde fomos felizes é adulterada por inúmeros factores e, por vezes, pensamos ter voltado e não voltámos. Depois dizemos que não se deve voltar aos lugares onde fomos felizes. Então voltamos onde, quando não podemos seguir em frente nem ficar parados?

25
Se teimo em ler 'Sabrina' onde está escrito 'Sabina', se teimo em ler 'Teresa' onde estão os outros nomes das heroínas das minhas histórias, isso poderá querer dizer que vejo o que quero, como quero? Que pinto e moldo a realidade a meu jeito? Então porque faço as escolhas que faço? Porque não escolho uma realidade mais leve, sustentável e suportavelmente leve?

26
Perdi-me de Teresa quando me perdi de mim.
O chapéu permance no bengaleiro. Tem pó. Devia ser escovado. Como ela fazia, sentada naquela cadeira, a que fica mais perto da janela, de costas para a luz, sentada sobre as pernas cruzadas.

póstumo
Como se estivesse fadada, desde o dia 1 deste texto, ao mesmo fantasma. Um fantasma de carne e osso que teima em sorrir-me enquanto estica a perna que, já me disseram, se parece com a minha, a fazer-me tropeçar, esperando pelo momento em que caio, o momento da minha derrota que será a sua vitória por não poder ter outras.