12 de junho de 2008

com facas não se brinca

Um dia, mais ou menos à saída da adolescência, a minha prima, grande amiga, quase irmã, Maria Manuel ofereceu-me o Livro em Branco. Como quando se ama se põe um certo cuidado no que se faz, não se limitou a embrulhar o livro. Comprou aquele tecido para bordar, acho que se chama quadrilé, já não me lembro bem, apesar de tantas vezes ter ido com ela à baixa comprar metros disso para os seus fabulosos trabalhos manuais. Comprou então o quadrilé e bordou nele um ramo de flores amarelas, retirado de um esquema que ela sabia que eu gostava especialmente. Com esse quadrilé bordado forrou o livro e então sim, deu-mo, dizendo que era para eu escrever o meu livro, finalmente.
Mas um Livro em Branco intimida e eu decidi que nele não escreveria nada de meu. Então esse livro serviu para eu ir guardando frases, poemas, pensamentos, aquilo que ia encontrando escrito por outros, com que de alguma forma me identificava.
Entre tanta coisa, está por lá uma frase do Joaquim Pessoa que diz qualquer coisa como "Palavras, amigas que não partem; e ficando resistem à memória." E ontem lembrei-me dela. Pensei nas palavras. As que dizemos, as que ouvimos, as que não chegamos a ouvir, as que gravamos, as que escrevemos, as que não apagamos.
Porque há palavras que nos reconciliam com os dias e há outras que quase nos matam de dor. Porque há palavras que são guardadas e nós não percebemos porquê. Porque há palavras que deitamos fora porque sabemos que se forem realmente importantes hão-de permanecer na memória.
No final de tudo, aquilo que importa é a razão que nos move: porque escolhemos as que escolhemos? Porque guardamos as que guardamos? Porque as carregamos connosco? Porque evitamos algumas? Porque repetimos outras tantas? Como diferenciamos e relativizamos as que atiramos para o fundo de uma gaveta para só encontrarmos por acaso, das que carregamos connosco no telemóvel ou em papelinhos dobrados na carteira?
Como esquecemos palavras duras que teimam em ecoar-nos no cérebro? Como faremos para nos lembrarmos da formulação exacta daquelas que podem ter mudado a nossa vida?
As palavras são uma faca de dois gumes, e com facas não se brinca.